sexta-feira, 2 de maio de 2008

Poema


Sofreguidão

Se nossa vida não passa
de um risco no tempo
e um ponto no espaço,
vem cá, mulher, e me abraça;
Pois a esperar o amanhã me desfaço
e a vida inteira é este momento!

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Reflexão poética



O fugitivo

Foge
impulsionado pelo medo,
e por aquilo
que o persegue.

Há tanto tempo
foge,
que não distingue mais perigos
nem rastreadores.

Se possível
teria ao mais absoluto recôndito,
sem som e sem luz,
e ali viveria feliz.

Mas não há tempo
para procurar
seguros esconderijos.
E por isso corre
e corre
e corre
e se esgueira...

E o desacerto dos passos
o cansa.

Até que o vem poupar a morte!
E, por fim,
o fim do mistério.

Daí descobre, aparvalhado,
que a vida que lhe fora um refugo
não era a obra de um deus
ou de um cínico diabo;
e do flagelo dos dias seus
fora ele próprio o vil verdugo.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Poema



Fujo do sol e do antélio

e dos fáceis gozos me enjôo;

nem almejo pretensos vôos,

tal Ícaro vil e funéreo.


Não quero festins e palácios.

O meu desejo, as saturnais

não mitigariam, jamais,

nem me livrariam do asco.


Também não me basta migalha

nem sobras de um mundo abjeto.

A Cristo e Deus lanço o repto

que a um tonto servil não calha:


“- Não venham enganar com esmolas!

- Se afastem, pois mortos estão!

Se não me fazem Salomão,

vão às favas sem mais demoras.”


Deus que põe em tudo que observo

Dianas vestais, como isca.

Teatro a todos da à vista:

a morte por cães como cervo.


Mas não sou Ateão pateta

para fugir a minha caça;

não troco por belas trapaças

minha alma rude de asceta.


Não sou ávido nem estóico.

Sou pedra, ao vento lixada;

que com a alma infatigada

resiste ao destino despótico.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Poema




Um janela

Vi a lua em teus olhos.
Duas pequenas esferas
pratas,
no castanho da íris.

Lua imensa, dentro de ti.
Clarão a iluminar
meu lado obscuro.

O que me era dado sentir?

Vi a lua em teus olhos.
Duas pequenas esferas
pratas,
no castanho da íris.

Uma lua, senda e segredo,
desvão, trilha sofrida;
levando a mim.

Era tua luz que me gerava medo?

Ferida aberta
a minar sangue,
esse reflexo
em teu olhar,
é tão agudo
em sua pureza:
que não consegue
me libertar.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Poema



Trapézio

Solto no incerto,
salta.
Mãos no vazio,
nada por chão.
Antes do encontro esperado
e redentor,
um salto mortal.
Seria ilusão de vista
o ato do trapezista?
Voa,
ausente de tato.
Perfaz um arco descendente,
cai -
descuidado qual estrela cadente?
Seguem segundos,
surdos.
Frêmitos mudos.
A vida jogada ao acaso,
sustida pelo hábito.
Tocam-se mão e madeira: aplausos.
Segue o show, muda-se o palco.

Na platéia, eu, com a alma contida,
Percebi no espetáculo minha vida.


terça-feira, 1 de abril de 2008

Poema


Dúvida metódica

Apenas a dúvida me duplica
E os erros seguidos me dão coragem
Renego a certeza que interdita
O acesso sagrado à outra paisagem

Poema


Estalactite

Como desenho de gruta,
Me precipito do espaço.
Engenho frágil, mortiço.
O nada me faz percalço.

Se caio me desfaleço.
Se fico, por que padeço?

Fome de chão e de teto.
Algo em meio,
Pendido.
Desvio de quantos ecos:
Que sorte me serve de abrigo?

Vaticinado de berço
Pra nada, furtiva vaidade.
Anátema da gravidade
(brinquedo do peso e da vacilação!),
meu ser encerra um enigma:
enquanto sonho de pedra:
inconcluso;
se me completo, pereço.

qual fosse um cadente astro
trafego em finito rastro!

28.04.06
6:00h
João Pessoa.
Sobre o quadro:
Estalactite, de Dalton Luiz

terça-feira, 25 de março de 2008

Karlinha



Seu nome era Maria Karla, mas todos a chamavam de Karlinha. Nessa noite Karlinha voltava para casa com passo vacilante. As coisas não eram mais as mesmas. Sabia que chegaria a casa e ela estaria vazia. Ligaria a televisão, tomaria banho e esperaria o sono chegar, sempre em silêncio. Sozinha.
Naturalmente pensou nos filhos, A gente cria os filhos para o mundo, lembrava e repetia esse ditado banal. Chutou com suavidade uma lata de cerveja amassada, Um sábado à noite em casa é dose!
É isso, é isso Karla, daqui a dois meses mais um aniversário... Quarenta e sete anos! Me lembro quando minha mãe tinha essa idade... E veio a sua memória o tempo em que foi casada. Casou-se na igreja, com tudo o que tinha direito. É engraçado, quanto mais o tempo passa, mais eu tenho mais certeza que eu poderia ter sido tudo de Laércio, tudo: amante, amiga, irmã, menos esposa. Mas como a gente tinha gostos em comum! Eu sabia exatamente o tipo de bar, de filme, de música que ele ia gostar... Mas era para ter sido um amigo. Um mulherengo, cínico, isso ele era também. Ainda bem que os meninos puxaram mais a mim.
Se bem que Márcio herdou a mesma sem-vergonhice do pai... Se ao menos Arabela estivesse em casa. Qualquer dia desses ela entra em casa e diz que vai se casar com o namoradinho. Tão nova! E hoje em dia é besteira querer se prender tão cedo...
Depois do casamento tivera vários namorados, casos de maior ou menor duração. Homens mais velhos, casados, viúvos, jovens rapazes... Hoje não namorava mais. Também, sem sair não tem como encontrar ninguém. Metida dentro de um apartamento só se faz amizade com barata.
Já faz cinco anos que me aposentei! O tempo passa rápido. Sempre quis me aposentar. Mas o pior é que às vezes me dá uma saudade... Lá na repartição era bom. Ninguém pegava no meu pé, eu fazia o meu trabalho, não tinha problemas de horário... E se lembrou das sextas-feiras. Toda sexta era dia de farra com os antigos colegas. Quantas noitadas. Foi nas sextas que conheceu a maioria de seus paqueras. Foi nas sextas que, em geral, fizera novas amizades. Meu Deus! Perdi o contato com tanta gente. Rosinha, Cláudio, Irene, não sei nem se estão vivos...
O dinheiro da aposentadoria não dá para nada! Nesse exato momento tomaria uma cerveja, se acaso tivesse com que pagar. Uma saideira. Sozinha. Depois iria para casa. Seu irmão era um amigão. Ligou para ela nessa tarde porque sentira que ela precisava de companhia. Embora não gostasse de sair sem dinheiro. Ele é que insistia... E eu também estava precisando dar uma saidinha. Quantos bons dias já havia passado com seus irmãos e irmãs. O danado era que todos estavam nas suas casas, com seus companheiros, seus filhos... Todo mundo está tão caseiro!
Já perto do prédio, lembrou-se das conversas e piadas daquela tarde. Quando se preparavam para ir embora, um grande amigo de seu irmão, que se tornara amigo dela também, comentou de passagem – “Eita que já vamos, Karlinha! Estamos ficando velhos. Nos bons tempos essa farra se estenderia noite à dentro. O corpo não agüenta mais...”. Ele devia ter uns quinze anos a menos. Sabia que ele continuaria na farra com a namorada e que fez aquele comentário casualmente. Mas havia algo dirigido a ela nessas palavras. Ela, tão conhecida como animada e farreira insuperável, ela que nem tão cedo voltava para casa antigamente... Hoje entrega os pontos rapidamente. E como isso não era verdade! Pelo contrário... Se estivesse acompanhada, se soubesse que não voltaria a casa sozinha, seria capaz de amanhecer em botequim. O problema é que, solitário, o corpo fraqueja.
Quem sabe um vizinho não me convida para uma conversa. Chegou ao seu edifício. Na entrada, Seu João, o porteiro, faz um comentário habitual:
- Está quente hoje, não é Dona Karla?
- Está demais.
- Isso é chuva que vem por aí.
Quis comentar algo, alongar a conversa, mas não fazia sentido. Deu as costas e, subindo as escadas, pensou que estas seriam suas últimas palavras no fim de semana... E daí desejou que chovesse muito. Mas chovesse o que não se imaginava. Sonhou com um novo dilúvio.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Poema


V.


Nesta desvalida e parca vida,

vale a pena o parto de uma paixão.

Mesmo que a ela o fim persiga,

mesmo que a dor a ronde, como um cão.

Poema


Le bal de la ballerine


A valsa

salva

o baile


O braço

sobra

o corpo


Um tanto

tonta

a moça


A asa

asa

vira

quarta-feira, 5 de março de 2008

Poema


Meu verbo



Tal é meu verbo

como o enxergo:


nunca suprime

o que não entrego;

nem se redime

no que eu renego.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Poema


Vista do Capibaribe

Água fétida do Capibaribe,
Que inunda agora a plaga
Onde com o amor estive.
Traz no teu curso frias adagas,
A me crivar, em chagas,
O que ainda sobrevive.


Torre – Beira rio – manhã de 23/jan – 2007.

A promessa


Quando sua avó se referiu à promessa feita em seu nome, aludindo para a necessidade de cumpri-la, não deu muita importância ao fato. Não que tivesse a pretensão de desrespeitar o rito e descurar do Eterno, mas porque supunha que a dívida com o divino seria resgatada com algo simples, a participação numa missa, por exemplo.
Eduardo andava feliz da vida e de bem com o mundo. Acabara de prestar vestibular, com êxito, para o curso de medicina. Seria um médico. Era jovem, disposto e otimista. Militante comunista, se imaginava um rematado revolucionário e trilhava sua vida fazendo da mesma uma ferramenta para alcançar o mundo onde todos seriam iguais...
Dentro do partido era considerado um dos quadros mais bem preparados. Discorria com desenvoltura sobre todas as minúcias da doutrina, tinha o dom de fazer crer que era porta-voz da mais autêntica pureza ideológica, cuja posse lhe dava a chave para os segredos da tática e estratégia insurreta.
Certo dia, em conversa com um companheiro, sentencia:
- Não dá mais! Amanhã mesmo levo a questão à direção partidária. Esse Jonatas é um pelego molenga....
- Na verdade – diz o amigo – ele é o próprio pequeno burguês.
- Não só isso. Ele é cristão! Totalmente cristão. Se há uma coisa nociva à postura revolucionária é essa baboseira, essa cretinice católica....
E Eduardo passou mais de meia hora atacando Deus, a igreja e quejandos.
Mas eis que, de súbito, Eduardo desaparece aos olhos dos companheiros de ideologia. Ninguém sabe de seu destino. Alguns especularam sobre uma provável morte; os tempos continuavam quentes, ainda havia gente que desaparecia. Outros ainda, tocados pelo medo ou por um caráter mesquinho, lançaram dúvidas sobre sua integridade – seria um espião? Um infiltrado? Efetivamente, ninguém sabia realmente dos motivos de sua desaparição.
Parte do mistério foi desvelada passado alguns meses. Por acaso, um dia, a esposa de um militante avistou Eduardo ao longe, andando apressado sobre uma ponte. Ele não morrera. Então, todos se perguntavam, o que dera nele para sumir assim? Não faltaram teorias sobre o tema. Contudo nada chegava perto da verdade...
Faltava aos antigos companheiros o conhecimento de um acontecimento vital, transcendental. Quando estava já próxima a formação em psiquiatria – especialidade que escolhera dentro do vasto campo da medicina – Eduardo é intimado por sua avó. Basta de adiar! O momento para pagar a promessa era agora!
- Tudo bem vó. Mas, qual é mesma a promessa?
- Você tem de lançar flores no rio.
- Flores no rio? – perguntou surpreso.
- Sim.
- Mas vó, todo mundo vai me ver! Já pensou se alguém do partido me vê?!
- Eduardo, Eduardo! Eu não quero saber de partido. Promessa é promessa! Quando você quis passar no vestibular não fez restrição a tipos de promessa...
- Mas vó, eu pensava que era uma missa, ou algumas orações. Não pode ser uma doação para um instituto de caridade?
- Não, Eduardo. Já disse: você tem de lançar flores no rio.
Deixou-se ficar quieto. Concedeu. Gostava e tinha muito respeito por sua avó.
No dia marcado, já foram eles. A avó fez o favor de carregar a coroa de flores enquanto chegavam ao cume da ponte; Eduardo se recusava. Viera quase disfarçado. Tinha o olhar agitado. “Agora lance, meu filho”, diz a velha.
No alto da ponte, Eduardo estático. Mira o horizonte triste, tal como vivenciasse as exéquias, e sacode a oferenda. Azar! O vento forte de agosto fez com que as flores descrevessem uma estranha parábola e, ao invés de tocarem as plácidas águas do Capibaribe, foram dar nas terras sujas das margens. Eduardo pressente o pior.
- Mas, meu filho, tem que ser na água! – disse meigamente sua avó.
Eduardo pensou em deserdar sua ascendência. Julgou que, se tivera sorte até agora de não ser visto por nenhum companheiro, a repetição do santo gesto era chance demais ao mau presságio: dessa vez teria testemunhos desagradáveis. Alguns curiosos já reparavam no acontecido; houve quem parasse para assistir.
Ligeiramente esverdeado ele vai em busca das flores fujonas, atola-se na lama, colhe-as novamente em seus braços. Sobe a ponte de cabeça baixa. Não queria olhar ninguém. Mas mesmo de cabeça baixa podia jurar que Carlão, melhor amigo seu no partido, observava-o com desprezo. Enfim, lança novamente as flores, dessa vez com sucesso.
Foi daí em diante que Eduardo abandonou as atividades sediciosas e guardou o socialismo no compartimento das memórias sensíveis. Anos depois, abandonaria também a medicina. Atualmente trabalha no comércio.
E sua avó? Sua avó dá palestras em um centro espírita e afirma a todos, sob juramento, que seu neto é médium.
Para Artur Perrusi

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Poema

Eu e você

É daquilo que surge sem causa –
Riso que se oferta sem sentir.
Vem de dentro do mistério,
Da memória que não se toca.
Não vem, em verdade.
Apenas segue.
Segredo que se oferta à frente,
Enigma por decifrar,
Sem começo nem fim:
Tanto que se revela
Quanto se oculta.

Horizonte desejado,
Seja no mar ou em terra firme;
Candeia dos olhos a iluminar,
Que vento algum apaga nem suprime.

Poço encantado, terno relicário,
Aconchego d´alma a recender
O essencial do ser – uno e vário,
Ou, apenas para esclarecer,
O duplo unitário:
Eu e você.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Poema


Ser e Tempo

É a poeira do tempo
que fabrica as coisas:
pedras, vermes, lodo,
que o tempo faz em pó.

A argila criadora
molda-se pelas mãos
dos dias; na solda
das horas vazias.

Muda-se o plano, eis
o assomo da morte:
rachadura e corte no
barro oco da vida.

O tempo tudo abarca –
casca das coisas,
esqueleto deletério
de entes degradáveis.

As coisas são a
concreção em mistura
do pó e éter temporal:
conluio de abertura e fim.

Se nada é fora do tempo -
sonhos, assassínios e deus -,
rói os ossos dos segundos,
os parcos farelos que são teus.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Poema


Um sax na madrugada

Um canto de sax na noite:
solitário canto.
Quem dera impregnasse o sono de tantos,
que dormem sonhos agitados
e roncam pesadelos.

O sax é bálsamo e açoite:
solidário espanto.
Vem como fera galgando ermo âmbito,
que acorda os sonhos agitados,
mas sem poder detê-los.

Poema


Poeminha de guardanapo

Meu desejo por ti é inútil;
entre nós há o tabu e o mito!
Porém, acaso não é fortuito
a essência de tal interdito?

Entendo que tenhas medo
e ao meu contato te esquives;
Só discordo quando dizes:
“Não há amor em segredo!”

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Uma lenda brasileira


Foi já há bastante tempo, antes ainda da luta dos Guaranis na região das Missões. A verdade é que pouco tempo antes de perder a tropilha desgarrada e ser supliciado e colocado sobre o formigueiro, o Negrinho tornou-se depositário de um dos segredos conhecidos e ocultados pela Salamanca do Jarau. Chegando certa noite ao seu ouvido, não se sabe até hoje se depois de perguntada ou se por uma ação espontânea, a Teianiaguá sussurrou-lhe o dito escatológico: - “Eita!”, disse o Negrinho.
O dia seguinte foi o seu infortúnio. Já acossado pelas formigas, o Negrinho teve uma idéia, por assim dizer, heróica. Pensava: - “Tenho que contar o que sei para os outros. Tem que ser feita alguma coisa”. Amarrado que estava, restou-lhe uma solução. Chamou uma ave inominável e ordenou-lhe que mandasse vir a todos com urgência; não sabia quanto tempo resistiria. Acrescentou: - “Mas fale que tenham cuidado. Isso aqui tem mais jagunço do que gente”. A ave se foi.
Voou muito em vão, a ave. Após muitas léguas, chegando à região amazônica, estando o céu tingido pelos derradeiros raios de sol, conseguiu encontrar o primeiro destinatário, Cobra Norato. Transmitiu-lhe a mensagem; em linguagem sucinta: - “O Negrinho precisa ser salvo, tem segredo, há grandes perigos”. Cobra Norato gelou. Aturdido, não sabia se fosse imediatamente salvá-lo, ou se buscasse ajuda. Refletiu loquaz: - “Vou chamar o pessoal”, exclamou afinal.
Rumou para o leste. Num ponto do Parnaíba avistou o Cabeça-de-Cuia. Inteirou-lhe; marcharam. Na direção do sul, passando por florestas, sertões, margens de rios, foram encontrando os parceiros: o curupira, a caapora, a mula-sem-cabeça e outros antigos habitantes das terras americanas.
Gente solerte, desacostumada a empreitadas coletivas, faria dessa noite e da viagem para o resgate do Negrinho, um acontecimento inesquecível e inigualável. Instados pela primeira vez a se unirem por uma causa comum, malograram numa desorganização sem conta. Salvo o caminharem juntos pelo mesmo caminho, rumo ao mesmo destino, as ações de cada um eram individuais, de si para si, e mais, matreiras, moleques, velhacas.
Um homem velho, vendo passar o cortejo daqueles entes maravilhosos, aplaudiu exultante. Um jovem de espírito prático que o ladeava, porém, entre lamentoso e irônico, proclamou: - “Pobre de um país que depende de suas lendas...” Sabe-se que esse jovem ganhou muito dinheiro com o comércio do açúcar.
O percurso foi marcado por sobressaltos em cada vilarejo visitado. Capiaus assustados pelas artes e trelas do Boitatá emaranhavam-se nas matas, donzelas se perderam, negros enlouqueceram. Urgia o tempo, mas a turma não dispensava burlas, assombração e algazarras. Enquanto o Negrinho minguava, os seres difíceis de ver alastravam pândegas pelas vilas. Acaso o Negrinho morresse, morreria com ele o mistério do segredo revelado e o país jamais encontraria a senda da felicidade.
Chegaram às terras onde sofria o Negrinho. Foi uma contenda terrível, cheia de marchas e contramarchas. Os seres solertes, orgulhosos que eram, na hora da refrega, mesmo esquecendo o alvo principal da empreitada, lutaram com ardor e raça. O senhor da fazenda era também homem feroz.
Quando a manhã já raiara, deu-se o fim do combate. A gente antiga das Américas venceu após a intervenção decisiva de Mapinguari, que mesmo assim perdeu sua armadura de cascos de tartaruga. Toda a fazenda destruída, jagunços e senhor mortos, as senhorinhas – num total de quatro -, levadas por Cabeça-de-Cuia e Cobra Norato, os filhos varões enfeitiçados por Mãe D´água foi o saldo da peleja. E mais: o gado inteiro com nós nos rabos dados pelo Saci. Este, para os colegas, foi destaque na batalha. Seu barrete vermelho, com algumas modificações, viraria símbolo de uma revolução ainda por vir...
Parece que foi Macunaíma que se lembrou: “E o Negrinho, cambada?!”. Alarido. Foram-no encontrar desfalecido num canto ermo da propriedade. O curioso é que junto a ele havia um papagaio. Alguém indagou, “E o segredo?”. “Agora é tarde!”, respondeu a Cuca. O papagaio falava, mas ninguém ouvia. E foi o último a saber do segredo. Há quem diga que ainda vive nas florestas da Amazônia. Mas naquela triste manhã, enquanto todos davam as costas e se iam, ele não parava de resmungar:
“Toda casa de espelhos, tudo reflete, refrata, imita.
Extasiando a quem vê, quem entra, quem passa,
Entediando a quem fica.”
E assim de seu.

Poema


A quem amarei


Vem de alguma parte minha nutriz;
ao meu encontro vem, do ermo errático,
do futuro sondado pelo oráculo,
pois me conformo a ti, dobro a cerviz.

Vem prover prazer a um solitário
que te busca a esmo, sem descanso;
vem dar ao rio revolto remanso,
e ao frio oceano terno estuário.

Vem de alguma parte mina nutriz,
pois sem ti sou nau singrando à deriva,
inconcluso, a metade de uma ogiva:
sou ave migrante sem a retriz.

Que seja a vinda de um porto distante,
ou da próxima esquina; mas não tarde.
Vem, pois no presente minha alma arde,
e dissolve-se para ter-te amante!