terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Poema


Um sax na madrugada

Um canto de sax na noite:
solitário canto.
Quem dera impregnasse o sono de tantos,
que dormem sonhos agitados
e roncam pesadelos.

O sax é bálsamo e açoite:
solidário espanto.
Vem como fera galgando ermo âmbito,
que acorda os sonhos agitados,
mas sem poder detê-los.

Poema


Poeminha de guardanapo

Meu desejo por ti é inútil;
entre nós há o tabu e o mito!
Porém, acaso não é fortuito
a essência de tal interdito?

Entendo que tenhas medo
e ao meu contato te esquives;
Só discordo quando dizes:
“Não há amor em segredo!”

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Uma lenda brasileira


Foi já há bastante tempo, antes ainda da luta dos Guaranis na região das Missões. A verdade é que pouco tempo antes de perder a tropilha desgarrada e ser supliciado e colocado sobre o formigueiro, o Negrinho tornou-se depositário de um dos segredos conhecidos e ocultados pela Salamanca do Jarau. Chegando certa noite ao seu ouvido, não se sabe até hoje se depois de perguntada ou se por uma ação espontânea, a Teianiaguá sussurrou-lhe o dito escatológico: - “Eita!”, disse o Negrinho.
O dia seguinte foi o seu infortúnio. Já acossado pelas formigas, o Negrinho teve uma idéia, por assim dizer, heróica. Pensava: - “Tenho que contar o que sei para os outros. Tem que ser feita alguma coisa”. Amarrado que estava, restou-lhe uma solução. Chamou uma ave inominável e ordenou-lhe que mandasse vir a todos com urgência; não sabia quanto tempo resistiria. Acrescentou: - “Mas fale que tenham cuidado. Isso aqui tem mais jagunço do que gente”. A ave se foi.
Voou muito em vão, a ave. Após muitas léguas, chegando à região amazônica, estando o céu tingido pelos derradeiros raios de sol, conseguiu encontrar o primeiro destinatário, Cobra Norato. Transmitiu-lhe a mensagem; em linguagem sucinta: - “O Negrinho precisa ser salvo, tem segredo, há grandes perigos”. Cobra Norato gelou. Aturdido, não sabia se fosse imediatamente salvá-lo, ou se buscasse ajuda. Refletiu loquaz: - “Vou chamar o pessoal”, exclamou afinal.
Rumou para o leste. Num ponto do Parnaíba avistou o Cabeça-de-Cuia. Inteirou-lhe; marcharam. Na direção do sul, passando por florestas, sertões, margens de rios, foram encontrando os parceiros: o curupira, a caapora, a mula-sem-cabeça e outros antigos habitantes das terras americanas.
Gente solerte, desacostumada a empreitadas coletivas, faria dessa noite e da viagem para o resgate do Negrinho, um acontecimento inesquecível e inigualável. Instados pela primeira vez a se unirem por uma causa comum, malograram numa desorganização sem conta. Salvo o caminharem juntos pelo mesmo caminho, rumo ao mesmo destino, as ações de cada um eram individuais, de si para si, e mais, matreiras, moleques, velhacas.
Um homem velho, vendo passar o cortejo daqueles entes maravilhosos, aplaudiu exultante. Um jovem de espírito prático que o ladeava, porém, entre lamentoso e irônico, proclamou: - “Pobre de um país que depende de suas lendas...” Sabe-se que esse jovem ganhou muito dinheiro com o comércio do açúcar.
O percurso foi marcado por sobressaltos em cada vilarejo visitado. Capiaus assustados pelas artes e trelas do Boitatá emaranhavam-se nas matas, donzelas se perderam, negros enlouqueceram. Urgia o tempo, mas a turma não dispensava burlas, assombração e algazarras. Enquanto o Negrinho minguava, os seres difíceis de ver alastravam pândegas pelas vilas. Acaso o Negrinho morresse, morreria com ele o mistério do segredo revelado e o país jamais encontraria a senda da felicidade.
Chegaram às terras onde sofria o Negrinho. Foi uma contenda terrível, cheia de marchas e contramarchas. Os seres solertes, orgulhosos que eram, na hora da refrega, mesmo esquecendo o alvo principal da empreitada, lutaram com ardor e raça. O senhor da fazenda era também homem feroz.
Quando a manhã já raiara, deu-se o fim do combate. A gente antiga das Américas venceu após a intervenção decisiva de Mapinguari, que mesmo assim perdeu sua armadura de cascos de tartaruga. Toda a fazenda destruída, jagunços e senhor mortos, as senhorinhas – num total de quatro -, levadas por Cabeça-de-Cuia e Cobra Norato, os filhos varões enfeitiçados por Mãe D´água foi o saldo da peleja. E mais: o gado inteiro com nós nos rabos dados pelo Saci. Este, para os colegas, foi destaque na batalha. Seu barrete vermelho, com algumas modificações, viraria símbolo de uma revolução ainda por vir...
Parece que foi Macunaíma que se lembrou: “E o Negrinho, cambada?!”. Alarido. Foram-no encontrar desfalecido num canto ermo da propriedade. O curioso é que junto a ele havia um papagaio. Alguém indagou, “E o segredo?”. “Agora é tarde!”, respondeu a Cuca. O papagaio falava, mas ninguém ouvia. E foi o último a saber do segredo. Há quem diga que ainda vive nas florestas da Amazônia. Mas naquela triste manhã, enquanto todos davam as costas e se iam, ele não parava de resmungar:
“Toda casa de espelhos, tudo reflete, refrata, imita.
Extasiando a quem vê, quem entra, quem passa,
Entediando a quem fica.”
E assim de seu.

Poema


A quem amarei


Vem de alguma parte minha nutriz;
ao meu encontro vem, do ermo errático,
do futuro sondado pelo oráculo,
pois me conformo a ti, dobro a cerviz.

Vem prover prazer a um solitário
que te busca a esmo, sem descanso;
vem dar ao rio revolto remanso,
e ao frio oceano terno estuário.

Vem de alguma parte mina nutriz,
pois sem ti sou nau singrando à deriva,
inconcluso, a metade de uma ogiva:
sou ave migrante sem a retriz.

Que seja a vinda de um porto distante,
ou da próxima esquina; mas não tarde.
Vem, pois no presente minha alma arde,
e dissolve-se para ter-te amante!