quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Uma manhã na praia


Uma mulher com toda a beleza de seus 32 anos. Esguia, com um rosto bem desenhado e afilado. Por mais que a insegurança a fizesse recusar a admitir-se bela, sabia-se desejada. Mas, cada confirmação pontual de seu poder de atração era rapidamente sobrepujada pelo pensamento persistente, maciço de desconfiança, de dúvida. Assim, via-se em eterna necessidade de reafirmar sua capacidade de sedução.
Entregara-se ao amor verdadeiramente. Namorara e casara. Porém, a seqüencia de desencontros, renúncias desvalorizadas, atritos fúteis e o ciúme exacerbado do parceiro, esfriaram-lhe os sentimentos; abriram uma cova onde paulatinamente se foram soterrando os bons momentos de paixão, até que a terra da indiferença e do desânimo sulcou sua alma definitivamente e transformou o terreno de seu espírito em solo infértil para a flor da antiga chama.
Pensava nisso, nessa manhã de sol forte e praia movimentada. Esperava poder um dia reviver um encontro amoroso. Se possível, desejava que a plenitude desse próximo enlace durasse o tempo de sua vida inteira. Nascera para o amor. Mas, na verdade, vivia o rescaldo do fracasso. Experimentara sensação semelhante a de pagar pesadas prestações monetárias para enfim não poder resgatar o algo que pretendia. Tempo irredento. Acaso não houvesse seu filho, brotado desse galho seco do passado, a frustração seria maior. Seu filho era uma linha paralela de tempo, a âncora mais forte que a atava à realidade. Lindo!
Todavia, uma relação filial parece não abarcar a totalidade da alma humana e para sentir-se mulher buscava outros caminhos do querer; então aspirava paixões antes que novas núpcias. Sentia necessitar ser arrastada pela força de uma sedução, entregar-se a uma aventura sem compromissos com o futuro, atiçar o desejo e saciá-lo com uma vencedora. E por isso ria agora. Ria discretamente, para si mesma, pois próximos a ela, dois rapazes, sentados à frente, a olhavam insistentemente e teciam comentários. Fingiu não perceber. No primeiro momento, inclusive, desacreditou ser ela o objeto da cobiça. Eles eram lindos!
Agitaram-se-lhe o sangue e a imaginação. Suas idéias condensaram-se em um tema específico, fazendo pulsar as artérias, alterando a respiração, acionando os mecanismos das vazantes femininas, aumentando-lhe o calor do corpo. Ficou em um estado de suspensão, um tanto alheia um tanto alerta para a abordagem esperada. De quando em quando concedeu brevíssimas trocas de olhares; o que após virava a face e seguia na convulsão ideal.
Depois de alguns meses sozinha – solidão que alimentava sua infortunada insegurança -, nos quais não se permitiu a aproximação de homem qualquer, sentia-se preparada, tranqüila, ávida de fogo passional. Estava, agora, grávida de sensualidade. O que passou estava decantado e neutralizado, e o presente aberto à nova vida.
Enquanto sua mente vagava no embalo eufórico, não percebera a vinda dele. Vinha do mar, a pele brilhando pelos reflexos solares na água que lhe escorria do corpo, os cabelos um pouco em desalinho. Sorriu absorta, o espírito dissipado na brisa marinha, e ouviu:
- Mamãe! Mamãe! Eu vi um peixinho bem na beirinha! Ele era amarelo e preto...
Para S. L.

Poema


Pão de cada dia

Meu desigual
que vens de longe,
do ermo bairro
pintado a cal.

Com o riso aberto
de dentes podres,
e toscas vestes
e o passo incerto.

Vem pro trabalho
que eu não faria;
dia após dia
recebe o malho

que não me cabe,
pois sou nascido
de outra cepa.
É então debalde

que te aflijas
pra que eu divida
o imerecido
de teu calvário.

Lá de teu sítio,
triste e malsão,
vem pro trabalho -
tunda e suplício.

Deixa teus ratos,
filariose,
teu lar inóspito,
tua tíbia raiva.

No escuro da
noite, cansado,
em teu tugúrio,
és agitado:
pois no espúrio pesadelo
tremes de medo e anseio
em te supor acordado.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Fantasias de natal


Começou a se preparar com muita antecedência. Separou a indumentária, barbeou-se, checou sua bagagem, banhou-se e perfumou-se. Enviou-lhe uma mensagem pelo celular, dando a entender que demoraria a chegar, pois havia se atrasado. Tinha uma dupla intenção nesse falso aviso: aumentar-lhe a expectativa da espera e surpreendê-la um tanto desprevenida. Devidamente paramentado, olhou-se no espelho, sorriu esfregando as mãos, estufou o peito: “É hoje!” – disse pra si mesmo. Tomou o elevador de serviço. Saiu imediatamente.
Haviam combinado em detalhes essa noite. “Encontrei uma parceira ideal”, pensava. Na verdade, aqueles meses de convívio com ela, intensos meses, o haviam rejuvenescido. Voltara a dar asas à imaginação, a sentir o gosto pela aventura; voltou a sentir-se pleno em seus desejos. E isso tudo porque percebia terem uma enorme afinidade, ao ponto de não sentirem qualquer vergonha em expor seus gostos, manias, idéias.
“De quem partiu a sugestão de hoje?”. Não conseguia lembrar-se. O fato é que planejar mais esse inusitado deixara os dois excitadíssimos. Guiava velozmente, dirigido pela ânsia. A casa ficava afastada da cidade, situada em local não muito urbanizado, com ares de região serrana, ou rural. Aproximava-se.
Desligou os faróis do carro, reduziu a aceleração à mínima possível, estacionou. Pôs-se a calcular a melhor maneira de descer. Pensava e ria-se baixinho. Nunca representara um Papai-Noel antes nem tampouco descera por uma chaminé. A missão era dificultada pelo saco que carregava, no qual trazia algumas garrafas de vinho – cuidadosamente envoltas em isopor – e uma pequena variedade de apetrechos e objetos de fetiche sexual.
Caminhando pela lateral da casa avistou facilmente a longa escada que dava acesso à chaminé. Enrolou e amarrou a sacola em seu braço e preparou-se para subir. Deveria encontrá-la chateada pela demora; nem sequer havia lhe retornado a mensagem. “Essa raiva passa logo!”, exclamou o lúbrico invasor.
Galgou o último patamar da escada, apoiou-se no beiral e aprontou-se para o salto. Você leitor, acaso estivesse vendo a cena, poderia perguntar por que a porta da sala estava escancarada e alguns móveis em desalinho. Mas, garanto, sua pergunta seria desnecessária.
Ao tocar o chão e pôr-se ereto, os olhos recebem a surpresa. Mal teve tempo para sustos; e mal pode mirá-la, lívida, no sofá. No meio da sala, com a arma em punho, o marido o esperava avidamente.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Poema


Noite

Na noite fria
passo
a passos rápidos
na rua escura
piso de leve
pra que ninguém ouça
pra que ninguém veja
que passo
na noite escura
a passos rápidos
despedaçado

Poema


Alvorada


É frio o ar que toca tua penugem
E é negra a salsugem que envolve teu corpo.

Vem de longe, teu amante.

Balança tuas madeixas de folhas e abre
Tuas pernas, sedenta da ardente flecha.

Seus leves toques te aquecem.

É constante esse amor, quase diário.
Mina orvalho, suor do coito amoroso.

De quando em quando, some-se,
A simular-te um adeus.
Mas é a ti que se guarda em chamas
Ah! Essas pobres brancas damas
A vagar pelos céus...


Morro de Camaragibe (Alagoas)/Recife – Outubro de 2006

sábado, 24 de novembro de 2007

Ivanovitch e Katiusckha


Ele era um respeitável militar de patente graduada e descendente de uma família nobre. Ela uma camponesa simplória e lindíssima! Ivanovitch, apesar de ter idade suficiente para as núpcias já algum tempo, era solteiro. A moça viçava em sua juventude e nas palavras do próprio Ivanovitch, “Era uma flor do campo!”.
O interesse por Katuska, este era o apelido dela, causou escândalo. Mas como pode? Um nobre?! Katuska era filha de Vanka e Vania, antigos moradores na propriedade de Ivanovitch. Os pais, naturalmente, temeram as intenções do senhor. A mãe iniciou rezas por Santa Anastácia. Mas o senhor Ivanovitch, de fato tomado pela alma de um sátiro, quisera revestir sua licenciosidade das mais puras e castas formalidades, ocultando com palavras e ações suas reais pretensões.
Aos pais, Ivanovitch foi falar. Disse-lhes que chegara a hora de casar-se, que havia esperado todo esse tempo por uma mulher que efetivamente merecesse sua dedicação e pôs-se a declinar—lhes as virtudes da filha:
- Ela é uma boa moça, pura, inocente! Há de me fazer muito feliz e, prometo-lhes, hei da fazer dela uma respeitável senhora, oferecendo-lhe conforto, uma família e criados. E vejam, sei que isso não é tudo, mas a ascensão de Katuska terá rebatimento na vida de vocês – insinuava o nobre.
Com esforço e argumentos tais como esses, conseguiu que a jovem o acompanhasse a Moscou. Não iriam sós, é claro; Katuska seria monitorada por uma irmã e uma tia. Lá, conheceriam os encantos da civilização, os bulevares, os teatros etc.
Ivanovitch, em seus aposentos, estava eufórico. Esfregava as mãos numa antecipação do regalo e olhava-se no espelho confiante. Via refletida a própria estátua da vitória. Naquela noite iriam ao teatro e depois jantariam; no restaurante daria um jeito de ficar a sós com a moça. Com uma “conversa amigável” somada a um não desprezível embrulho recheado de jóias, alcançou o intento: jantariam apenas ele e ela.
No restaurante, deu-se o esperado:
- Senhor, fico sem jeito, senhor. Não sei me comportar. Todo esse luxo... – e baixava a cabeça em reverência e por timidez.
- Não fique assim, senhorita. Com o tempo verás que não há mistério algum.
Nesse momento Katuska distraidamente deixa cair um talher. A queda é acompanhada por um suspiro de susto seu. Alguns freqüentadores se voltaram para ela. Em seu nervosismo, julgou que todo o estabelecimento a olhava. Em seu frêmito e desconforto, moveu-se inadvertidamente e entornou a taça de vinho sobre o senhor Ivanovitch. Mais vexame ainda!
Ele era um grande apreciador de vinho, mas também um homem prudente. Meneou a cabeça pra lá a pra cá, num gesto negativo. Mas esse menear vinha em consórcio com um sorriso simpático, cordial. Na verdade, a cabeça expressava sua irritação interior, “É uma bronca mesmo”; os lábios refletiam seu lado racional, dissimulador, “É preciso não assustá-la ainda mais”.
A moça se fez mais calma. Durante toda a noite Ivanovitch tentou algum tipo mínimo de intimidade, um toque de mão, um roçar de pernas. Katiusckha barrava-lhe as tentativas. “É uma fortaleza”, dizia o nobre consigo.
A repercussão do caso em Moscou foi intensa. Não faltaram notas irônicas nos jornais. Mas Ivanovitch estava decidido. Agora não teria mais volta, seria o desbravador daquele tesouro. Virara uma espécie de obsessão, um capricho frívolo se tornou um desafio vital.
Marcaram-se as bodas. Agitava-se a cidade, os fuxicos fizeram-se usuais. A três dias do casamento, Ivanovitch foi mais uma vez visitar a noiva na casa dos pais.
- Boa noite, senhor – foi a recepção a ele.
- Boa noite a todos – dissera elegantemente o nobre.
Foram chamar a jovem. Mas ocorrera o inusitado: ela desaparecera. Como? Para onde? Puseram-se a procurá-la. A princípio sem grande ansiedade, posteriormente com aflição de morte. A lindíssima Katuska sumira. Era como se houvera desintegrado. Grande foi a confusão. O senhor Ivanovitch tornara-se iracundo, fervia-lhe o sangue, espumava-lhe a boca. E berrou, berrou desesperadamente como um profeta do antigo evangelho. Porém, obviamente, de nada adiantou o escarcéu. A moça que não fora ouvida sobre os arranjos matrimoniais, que permanecera calada em quase todos os momentos, arrumara um jeito de se pronunciar.
Com uma semana, espalha-se a notícia: Katuska fugira com um jovem e viril cossaco. Escândalo! Abalo sísmico na família e na alma de Ivanovitch. O pior ainda viria semanas após: Katuska fugira grávida. Daria à luz em breve.
O velho nobre envelhecera anos em dias. A vergonha e o ódio o consumiam. Terminou por refugiar-se no credo tolstoísta. Desapareceu do mundo. Katuska foi muito infeliz no casamento com o cossaco alcoólatra.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Poema


Meu funeral


Alívio ao ver-me ali ao lado,
parado, inerte sob o céu plúmbeo;
cercado por dissimulado cortejo,
como convém a qualquer moribundo.

No pálido rosto, um esgar de riso;
declinante da vida sem dor e sem dó.
Tal ricto, acaso, assome do espasmo,
da hipócrita máscara que reina ao redor.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Poema


No mais alto mirante: Narciso


Exausto galga o cume.
Abaixo,
o mundo inteiro ao sabor da vista;
mas, há razão pra que se insista -
exânime -
fixar em algo o olho gasto?

Pra que melhor perspectiva?
Inútil.
Como qualquer Narciso em outro espaço,
o sal da vida é pra si nefasto,
impuro,
e tem no outro o expressar de um susto.

Vive em claustro,
em redor do feio;
vence a subida glamurosa do mirante,
lasso,
para afinal ver-se a si mesmo num pequenino espelho!

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O Milagre


"Quem diria! Eu mesma nunca pensei que fosse se tornar algo sério! Essas coisas são tão engraçadas...”. Eram com esses pensamentos que Lurdinha voltava para casa. Há mais de um ano conhecera Jessiel. Um rapaz educado, doce e muito religioso. Era evangélico; vivia para a igreja.

Nunca se imaginou namorando com um evangélico. Sempre detestara a insistência protestante de converter a todos, sua insinuação de que qualquer outra religião é um equívoco. Ela própria era católica, freqüentava igreja, comungava. Porém nunca perdera o espírito ecumênico. Mas aconteceu: namorava há mais de um ano com Jessiel. E o amava.

“Com ele é diferente”, pensava. Era verdade que havia um desejo, não manifesto, de que ela trocasse de fé. Repetidamente pediu a ela que comparecesse a um culto: “Só para você conhecer”, dizia ele. Ela nunca fora. De certa forma, quis construir a relação mantendo essa espécie de identidade: “Nós nos gostamos, mas temos crenças diferentes”. A continuidade de tal fato era até um sinal de que ninguém se impunha ao outro, que mantinham uma relação de igualdade.

“Mas hoje vou lá. Vou fazer uma surpresa a ele.” Ainda se lembrava do dia anterior, quando ele mais uma vez sugeriu: “Vá lá, meu amor. Você vai gostar”. Acho até que ele me chama, mas não tem mais esperanças de que eu apareça em sua igreja, pensava Lurdinha. Estava com saudades, com vontade de vê-lo e a única forma era encontra-se com ele no culto: “Jessiel, aquele ali, não troca um compromisso da igreja por nada nesse mundo!”, costumava dizer às suas amigas.

Passou em casa. Tomou um banho, vestiu-se, pegou a bíblia e saiu. No caminho, pensando sozinha, não deixou de se perguntar com certa graça: “Será que um dia me converterei?”. Não tinha problema; se acontecesse seria uma decisão livre dela.

Não esperava tanta gente. Havia um notório clima de euforia. As pessoas gritavam, “Jesus! Aleluia Jesus!”. Era, de fato, um ato barulhento. Por encontrar dificuldade em aproximar-se do púlpito, deixou-se ficar junto da porta de entrada, encostada à parede.

Todo testemunho de um milagre é cercado por uma combinação de deslumbre e terror, medo. Mas Lurdinha sentia apenas terror. Todo o seu corpo tremia, seus olhos verteram lágrimas. Quando o paralítico levantou-se da cadeira de rodas e, a princípio com dificuldades, mas depois de forma natural e consistente, começou a andar e pular, sob a ovação orgiástica da assistência febril, Lurdinha deixou tombar a bíblia. Mal se sustinha em pé. Com a alma revirada e a mente embotada, só conseguiu pronunciar um murmúrio

“- Não! Não pode ser! Como Jessiel pôde fazer uma coisa dessa?!!”

domingo, 11 de novembro de 2007

Dialéticas

Apenas o escorpião, além do homem, suicida-se.
Suicida-se unicamente, e sempre, quando está cercado por fogo.
Ah, o livre arbítrio!
A liberdade humana...
Que se daria
se fôssemos escravos da rígida disciplina
cromossomática daqueles insetos?

Poema


A corda mundo


Frouxos nós
corredios
quase desatados nós
estamos
Nós, cegos nós?

Que se nos amarra?
Sós,
Cada qual é fibra solta,
amontoado feixe,
que não se adere
a nós.

Nem baraço
nem laço
salvador.
Anódino,
cada traço,
se desfiando
lasso,
em derredor.

Soltos
Nós
Sós estamos
Nós, cegos nós?

domingo, 4 de novembro de 2007

Uma postura diante da vida

Não gostava muito daquelas bolachas.
- Não sei porque insisto em comer?
E pensava que, se fosse em um outro dia, poderia ter ido à praia. Mas acordou sem disposição - não dormira bem também. Gostava de praia: o sol, o clima de festa, de alegria; as mulheres e suas... Ah as mulheres! Teve um dia que, jurava, viu uma delas fazendo top less. Gostava de praia! Lembrou-se das vezes que o irmão chegava em casa vindo de Boa Viagem... Nunca mais vira o irmão - "Será que ainda mora com mãe?", indagou-se. Nunca fora à praia com seu irmão.

Morava só. Em alguns momentos gostava de ficar só. Acostumara-se, parece.

E olhava de longe um grupo de crianças do bairro jogando bola. Que barulhada que faziam! Gostava de ver futebol. Tantas vezes sonhou em ser jogador. Imaginava um estádio lotado, numa decisão de campeonato, e ele marcando o gol da vitória. E a galera inteira gritando o seu nome. Era tímido mas gostaria de ser, ao menos uma vez, o centro da atenção de todos. E ser admirado...

Tarde quente. Muito quente. "Vento preguiçoso que não se mexe", pensou. Soube que estava passando um filme legal em um dos cinemas da cidade. Teve vontade de ir. Mas era difícil. Morando no Alto do Capitão, tinha que descer o morro, se deslocar muito até a parada mais próxima... Era muito cansativo. Mas gostava muito de filmes. Não gostava de filmes com legenda - não dava tempo de ler. Impressionava-se com quem conseguia ver filme legendado! Estudos.

Não gostava de domingos. Sentia-se mais só que nos outros dias. À noite, às vezes ia ao culto, outras não. Tinha dúvidas... E pensou muito, olhando pela janela: na vida, no que poderia ter sido; formulou hipóteses alternativas: se eu fosse rico, se tivesse um carro, se fosse muito conhecido; se tivesse muitos amigos... E a noite chegou. E ele estava, de fato, desanimado e sem disposição. Tateou a parede em busca do interruptor. Acendeu a luz. Seus olhos correram sua pequenina moradia: oca, pobre, vazia e silenciosa. Decidiu escutar o rádio. Foi até à mesa, onde estava o aparelho, pegou-o e voltou para junto da janela. Era um programa bastante conhecido seu....

Estava triste. Ajeitou-se com dificuldades no assento. Fazia tempo, mas muito tempo mesmo, que precisava de uma nova cadeira de rodas.

Poema


Esta noite


A lua crescente -

sorriso de astro -

é o irônico ricto da noite,

interna,

na qual me desfaço.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Poema

Desabafo
Ao perscrutar os segundos
da vida que lhe escorria,
julgou que seu dia-adia
era uma soma de escombros:
cacos de rotina fria
pesando sobre seus ombros.



Poema retirado do desabafo "Sem assunto 2", de Ana. A Ninha do ninhodaninha.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Boa Vista


Um sujeito relaxado, que não liga pra muita coisa, até preguiçoso. Desses que aproveitam o chiclete usado, que se encontra escondido por baixo do assento da cadeira. Leva a vida assim, como se masca um chiclete gasto.
Era por volta das 2 da madrugada e ainda bebia num boteco próximo ao Pátio de Santa Cruz. A radiola de ficha fazia um barulho infernal, tocando todo tipo de brega. Já estava bêbado. Tinha fome também. Calculou o dinheiro que lhe restava; desistiu de comer. Pegou um cigarro do maço amassado, e chamou o garçom com cara de índio paraguaio: “Chefia, quanto deu aqui?”
Passara a noite toda atrás de mulher. Queria muito trepar. Não rolou com nenhuma das mulheres que topou; pareciam sempre não ter pressa para o sexo. Ele tinha. Não estava a fim de frescuras. Pensava: “Hoje é quer ou não quer?” Ou então, “Quer quanto?” Resolveu ir para um puteiro.
Na rua semi-escura apenas um ou outro bêbado, umas putas e dois travestis. Passou ligeiro. Não queria brincadeira. Se um daqueles travecos soltasse uma gracinha, matava de porrada. Dobrou à esquerda e foi dar na avenida principal do bairro. Há alguns metros um grupo de pivetes, quase todos tocados a craque, outros a cola, sacaneavam com um aleijado. Sem pernas, sobre uma tábua montada em rolimãs, esse não conseguia se livrar do grupelho de moleques. Aproximou-se da cena: com gritos e ameaças dispersou o bando. Odiava aquela gritaria! Nem se deu conta do perigo que corria...O aleijado gritava, com voz gasguita, um bocado de desaforos. Nem falava nem chorava. Olhava e mexia os braços na direção dos menores. Gritando, gritando... Era desagradável aquele seu grunhido. Lembrava o cio de cadela.
Ficou irritado; chegou-se mais perto do aleijado, pelas costas, e deu-lhe um cascudo tão forte que por um momento chegou a pensar que lhe tinha rachado o crânio. O miserável soltou um ganido medonho e caiu da tábua chorando muito. Do outro lado da rua os moleques gargalhavam. Deu as costas e seguiu. Os pivetes voltaram a se aproximar do sem-pernas.
No fundo estava chateado. Não gostava de fazer aquilo com velhos. Não sabia por quê. Talvez pela saudade do pai, do avô... Mas não gostava.
Chegou ao puteiro que costumava freqüentar. Cumprimentou Doninha, a proprietária, e algumas raparigas. Pediu bebida.
- Doninha, Yolandi tá grávida? – perguntou.
- Tá sim, não sabia?
- Não. Como é que eu ia saber? Faz tempo que não via essa daí.
- Seis meses de gravidez já.
- E ainda trabalhando?
- Eu já avisei a ela que esse é o último mês. Mas tem cliente que gosta.
- Isso é um bando de filho da puta! – comentou.

Decidiu dar todo o trocado que tinha para “aquela louca”, como a julgava. Simpatizava com Yolandi. Lembrou-se das vezes que fez programa com ela. E, ainda por cima, ela era muito nova. “Quantos anos deve ter essa menina? Uns 18 no máximo”, calculou. Pendurou a cerveja que havia pedido e saiu.
Quando quase acabava de atravessar a ponte, parou. Lembrou-se, deu meia volta e se dirigiu novamente à parte mais alta da ponte. Olhou em várias direções, pensou: “Essa merda de cidade é bonita”. Conferiu se vinha alguém, pegou a pistola que trazia e sacudiu no rio. Quase já estava esquecido do velho que havia matado há algumas horas.

Poema


Digestão antiutópica

Num banquete incessante devoro -
Qual a harpia ao fígado insolente,
Meus alvares desejos de olimpos,
Em repasto bulímico e inútil.

Fome de deuses, que não se aplaca.
Rumino sonhos em baba ácida!

Após tal noite terrível, tez de pantera,
Que mísera alva, raquítica, se espera?

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Imagem - Dialética

... há tempo...




Dialéticas

Quando a realidade é pesadelo,
o sonho é a única possibilidade.
Mas sonho que não se alcança, cansa;
e o que se faz realidade...
é pesadelo!

Poema

Tempus regit actum
No instante em que a pedra rolou
da íngreme escarpa do monte
inatingível, um deus jazia
na sua solidão de asceta.
Indiferente ao fato se amor
brotava da abrupta travessia
da pedra, que buscava horizonte
no risco da mudança incerta.
Ao rolar da pedra, desmorona
o monte com as plantas vetustas;
com seus ninhos de assustados pássaros
que fogem nas volutas do vento.
Sob escombros o novo assoma,
do rumor da terra em sobressalto,
da angustia da vida que luta
contra a morte no seu nascimento.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A única opção possível


Era um dia de plantão como outro qualquer. Aos domingos, na verdade, o movimento era mais intenso, refletindo o rotineiro aumento de atitudes violentas no dia de folga da população. Acabara de atender a um paciente ferido por golpes de faca em suas costas e braço; ainda não sabia se conseguira salvá-lo.
De passagem pelo corredor, encontra um querido amigo:
- Esse teu time não vale nada!
- Que nada! Descuido de time grande...
Gostava muito de futebol e, talvez ainda mais, de gozar seus amigos.

Às 19:30h deu-se o evento. Dá entrada em seu setor um sujeito ensangüentado, acompanhado por dois policiais – um sargento e um soldado. Pela sua experiência sabia se tratar de uma vítima de arma de fogo. Passou as instruções devidas aos enfermeiros, concentrava-se, preparando-se para mais uma intervenção cirúrgica, quando foi abordado pelo sargento:
- Esse aí não se salva não, doutor.
- Como? – pergunta o médico atônito.
- Esse não pode se salvar. Entende? Não pode! Matou um da gente. Esse acaba aqui!
- Você está insinuando que eu o mate?
- Doutor, sinceramente, a escolha é sua: se ele sair vivo daqui, morrem os dois depois; se você colaborar, morre só ele e ninguém fica sabendo de nada.
O médico entrou na sala de cirurgia tremendo. Em seus anos de vivência em emergências nunca havia se defrontado com algo semelhante, nem tampouco ouvira relatos parecidos por parte de algum colega. O médico anestesista terminava seu procedimento. Decidiu, por um breve instante, comunicar-lhe o acontecido, dividir a angustia; poderiam, juntos, encontrar alguma solução. Desistiu. Teve receio que fosse inútil e apenas resultasse em pôr mais uma vida em risco.
O médico anestesista lhe deseja boa sorte e sai de cena. Chega o seu momento. Transpira mais que o habitual. “Não posso fazer isso”, pensava. “Vou me tornar um cúmplice!”. No entanto, a possibilidade de ser morto provocava forte impressão na sua alma. Era um homem jurado! Claro, pois as palavras do sargento não foram outra coisa que um juramento de morte, mesmo que velado.
Pergunta aos assistentes:
- Vocês sabem alguma coisa sobre ele?
- Tentou roubar uma farmácia. Na hora passava uma viatura de polícia pelo local. Houve troca de tiros. Sobrou para ele. Os dois comparsas fugiram. Parece que um policial morreu – respondeu um deles.
- Quer dizer que é um bandido?
- É sim. É ladrão.
- Por favor, consiga água pra mim. Estou com muita sede – requisita o médico. Deixe que eu seguro as pontas por aqui.
- Tem certeza?! – pergunta o assistente, de certa forma surpreso com o pedido incomum.
Vacilava. Os olhos de súplica, que dirigia ao cirurgiado, poderiam parecer aos que o circundava, um atestado singular de humanidade! Eram olhos esgazeados e perdidos Acaso optasse pela morte do bandido, suas ações era limitadas. Teria de disfarçar, despistar, iludir. Seu espírito titubeava entre escolhas vitais. Pensou, e agiu como julgava que deveria fazer.
Voltou para casa às 22:30. Estava exausto. Tinha um ar atormentado, o qual foi notado pela esposa que o esperava acordada.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, nada. Esses plantões de domingo é que são um inferno!
Tomou banho. Vestiu-se. Passou pelo quarto da filha, olhou-a dormir. Nada nesse mundo lhe era mais caro. Aproximou-se da esposa, conversou amenidades. De repente imaginava-se separado de tudo aquilo ali, da casa, da mulher etc. Abraçou-a. Balançou a cabeça. Bobagem. Desviou a conversa para os projetos que acalentavam juntos: a viajem de férias e a troca de apartamento. Gostava de observá-la animada, fazendo cálculos, imaginando novos planos... Era assim que gostava e queria vê-la.
Quando se deitaram, pensava consigo, “falhei”. Acordou mais cedo que todos, foi até a varanda, contemplou a rua. Sorriu um sorriso resignado. Um riso que, não se sabe, era de alívio, ou de despedida.

Poema

Após a capital queda


Num poço, imerso ao pescoço estou, em bosta;
Longe de paraíso, cristão ou ateu.
Moço que se imolou em seu próprio breu.
Narciso às avessas, cuja imagem detesta.

A relva que me serve de leito é daninha,
A pasta que rumino qual pasto é infesta,
Catervas de bernes habitam-me e atesta,
Que o humano se resta, só me toca à crosta.

Réprobo, culpado de minha própria culpa,
Expio incrédulo pecados supostos.
Ázigo cercado por récua sem rosto
Carrego enfermo patíbulos eternos.

Pairo, sem rota, como poeira revolta.
Anaclítico levado pelos infernos,
Sou órfão que purga castigos paternos.
E a roupa que envergo me aquece e sepulta.

Sem um sítio de meu
Vago a encontrar botas,
Onde Judas as perdeu.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Poema

Matéria

Se trago essa alma de gelo
e tenho os nervos de aço
e clame com voz de veludo:
“- Devagar, o santo é de barro”;

é que por trás desse metálico sorriso,
e desse inquebrantável silêncio de surdo,
sou estilhaços de mil e um conteúdo!

En passant

Quando olhava fixamente para seu adversário, tinha sincera vontade de rir: o nervosismo dissimulado com elegância, a arrogância respeitosa, a alma absolutamente arrebatada na ambigüidade daquele momento. Que sofrimento daquele pobre diabo!
Há exatos vinte e dois anos era campeão mundial; de certa forma, quando agora mirava seu oponente, julgava ver nele uma cópia sua de mais de vinte anos passados, quando tinha quarenta e cinco anos e se julgava jovem, e ao mundo importante. E isso o irritava ainda mais.
Durante todos esses anos fora exaltado e vivera sob o peso da mais circunspeta respeitabilidade pública. Fora um tempo exaltado e extenuante, de estudo contínuo, teorização e probabilidades. Portanto, essa última partida do Match, o jogo de desempate, soava-lhe como um alívio. E deixou-se absorver por raciocínios estranhos à situação, pelas memórias de uma vida que acreditava ter pouco sentido. Assim, não cobria consequentemente o avanço do cavalo na ala da dama e desleixadamente deixava-se dominar na perspectiva tática.
Sempre comparara a vida ao xadrez: a obrigação das ações planejadas, de ilações implacáveis; a atenção totalizadora; o exercício ininterrupto de antecipar o futuro; a necessidade de ocupar posições centrais. Logo, nessa altura de sua existência, era natural que se desinteressasse também pelo xadrez. E por isso continuava movendo as peças mecanicamente, apenas adiando o desfecho verdadeiramente desejado com posicionamentos defensivos e volteios logrados por sua profunda experiência.
Absorto, pensou na família distante, nos amigos assoberbados e nos já mortos, no patrimônio acumulado sem por quê. Tais pensamentos confrontados com a fisionomia a um só tempo agônica e retraída de seu oponente, suscitavam-lhe o melancólico gozo irônico. Explicitamente permitiu ao peão adversário capturar en passant o seu peão da coluna do bispo, tornando quase inevitável sua promoção. Comprazia-se com a dúvida do contendor, seu receio de ciladas!
No momento em que a distinta audiência prorrompeu em aplausos e o homem do lado oposto do tabuleiro estendia-lhe a mão, sorriu profundamente. Já não era mais o campeão.
O velho enxadrista retirou-se do recinto sem tecer comentários ao jogo. De fato, aquele momento seria sua última aparição pública. Isolou-se numa pequena propriedade no interior, recusando-se a receber jornalistas, colegas e estudiosos, até sua morte. O grande campeão guardou-se em seu mistério e seu silêncio. Findou seus dias como a torre que lhe restara, naquela sua última partida: afastada do turbilhão dos movimentos, sem guarnecer posições importantes, alheia. Tranqüila.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Poema


O Predestinado


Os vincos no seu rosto esgravatado

São frutos da lágrima farta e ácida

Que se faz ravina, ou gretas de árido

Barro, projeção do deserto d´alma.


Ao agitado olhar se descortina

O índigo céu da terra prometida.

Ao futuro diz mirar a retina,

conquanto erga de passado a vida.


Suas portináricas pernas, rijas,

Desdenham de óbices, empecilhos.

Dissimula, assim, traçado tranquilo

De caminho por vereda perdida.


Calca orgulhoso o chão plúmbleo e maciço,

Forrado com a neve da certeza.

Com empenho se reveste à realeza,

Mas dentro é lenho sem verniz ou viço.


A voz límpida e alteada, trafica

Fragor de assombro, sombra da verdade.

Finge sincera crença no que dita,

Ocultando sua dúvida em alarde.


E, por fim, se traz semblante seguro,

É por temer a liberdade rútila,

Refugiando-se dentro da estúpida

Calma dos que trocam a luz pelo escuro.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A volta


Tramou durante meses. Aquilo virara uma obsessão: tinha de sair com aquela mulher. Colheu informações sobre ela, seguiu-a por um tempo, desvendou-lhe hábitos. Entre outras coisas, descobriu que ela sempre almoçava no conceituado Dórias´s às sextas-feiras. Demorava-se cerca de duas horas, conversando com amigas. E que tinha uma queda por homens “que sabem vencer na vida”.
Com ajuda de falsificações conseguiu um empréstimo bancário. Em posse do dinheiro iniciou o cerco. Sempre vestido impecavelmente, exibindo grifes, abordou-a, pagou-lhe contas, ofertou presentes. Nos dias em que se encontravam, inicialmente sempre no Dórias´s, alugava um carro de luxo, sempre o mesmo, para incutir a idéia de posse.
Um dia, encontrou com um amigo que conhecia o plano:
- E aí? Como andam as coisas? Já conseguiu?
- Estou quase lá! – disse eufórico, arreganhando os dentes como se fosse escová-los.
- Você vai ficar é louco com essa história! E esse dinheiro, rapaz? Como tu vai pagar esse empréstimo?
- Isso se resolve depois. Você a viu. Por uma mulher daquela se faz qualquer coisa! E Ela já está caindo na minha... Estou quase traçando! (esfregou as mãos).
- Bom, quem avisa....
- Deixa comigo. Tu precisavas ver.... (seguiu gabando-se de seu papo)
Chegou o dia. Ela, mais curiosa que encantada, concordou com um encontro. Marcaram para se encontrar à noite. Ele sempre muito gentil, galante. O seu espírito babava, antecipando prazeres. A novidade de uma nova vida – bons restaurantes, jantares, vinhos finos -, também o excitava.
Morava num bairro afastado, freqüentava botecos. Daí, durante todo esse tempo de impostura, evitou os antigos lugares, a fim de não se revelar a farsa. Para a maioria dos amigos, andava ausente.
Que noite! A fúria carnal do primeiro encontro! Extasiou-se. Nesta noite confirmou o quanto desejava aquela mulher. O amanhecer trouxe beijos e elogios durante o café da manhã.
À noite, teve dúvida se ligava pra ela. Algumas vezes chegou-se ao telefone. Não ligou. Dormiu e acordou pensativo. Foi à padaria. Andou um pouco pelo bairro, saudou alguns conhecidos. Tinha que voltar a vida. Arranjar dinheiro. Teve a idéia, voltou a casa.
Sentou-se a mesa, um grande copo de água à frente, tomou tranqüilizantes. Matou-se, cansado de ser ele mesmo.
No recibo do empréstimo bancário encontrado a seu lado, leu-se a sentença: “não existe mais vida, depois do que fiz”. E muitos julgaram ler na mensagem uma prova de arrependimento!
* "Don Juan and Haidee", painted by Alexandre Marie Colin, 1883 (imagem)

Reais aparências


Após um duro dia de trabalho...

- Estou morto! - disse o coveiro.

Poema


O periquito na madrugada


sua cegueira de pássaro
guarda seu medo ancestral

nas trevas, seus olhos vãos
tornam-lhe impróprio o chão

aflição de urgente mal
automatiza-lhe o poleiro?

seu mundo de estupor
carrega um destino aflito

qual primeiro predador
deu origem a teu temor?

que medo faz vir o grito
milenar do periquito?

domingo, 7 de outubro de 2007

Dialéticas

Sempre que se sabe o certo
É por se estar fora dele
Mesmo que se julgue tão perto

O amor de Tadeu

Amava a esposa. Gostava de levar pequenos presentes para ela. Depois da reunião, passou no shopping. Antes de entrar na loja, parou na praça de alimentação, tomou alguns chopes, deu espaço para passar os minutos. Olhou o relógio, pediu a conta.
- Tem o novo disco da Marisa Monte?
- Tem sim, senhor?
- Você pode embalar pra presente?
Pegou o caminho de casa. Na frente do prédio parou ainda uma vez para tomar alguns chopes - precisava beber um pouco e Amanda não o acompanhava. Ela não bebia.
De tempos em tempos, dava uma olhada na direção do portão do edifício. Estava um pouco cansado. Mais uma meia hora, de soslaio, percebe um vulto na portaria. Não quis olhar; em geral, nunca olhava. Pediu a conta e saiu.
Entrou no seu apartamento, mobiliado com tanto gosto! Amanda sai do banheiro, enrolada numa toalha, cabelos molhados, linda.
- Oi Ta, tudo bem?
- Tudo. Um pouco cansado, só.
- O que é isso?
- Pra você.
- De novo - diz ela, abrindo o presente com um sorriso nos lábios. Deu um beijo rápido em seu rosto.
- Não precisava. Você e sua mania de me dar presentes. Mas, obrigada!
Tadeu se vira, seu olhar repousa na cozinha. E lá na pia, desavisado, um copo com o resto de uma dose de whisky.
- Vou tomar um banho. A reunião foi um saco.
Algumas ruas dali, um vulto sorri saciado, meio irônico, no prazer de enganar e de agir escondido.