terça-feira, 16 de outubro de 2007

A única opção possível


Era um dia de plantão como outro qualquer. Aos domingos, na verdade, o movimento era mais intenso, refletindo o rotineiro aumento de atitudes violentas no dia de folga da população. Acabara de atender a um paciente ferido por golpes de faca em suas costas e braço; ainda não sabia se conseguira salvá-lo.
De passagem pelo corredor, encontra um querido amigo:
- Esse teu time não vale nada!
- Que nada! Descuido de time grande...
Gostava muito de futebol e, talvez ainda mais, de gozar seus amigos.

Às 19:30h deu-se o evento. Dá entrada em seu setor um sujeito ensangüentado, acompanhado por dois policiais – um sargento e um soldado. Pela sua experiência sabia se tratar de uma vítima de arma de fogo. Passou as instruções devidas aos enfermeiros, concentrava-se, preparando-se para mais uma intervenção cirúrgica, quando foi abordado pelo sargento:
- Esse aí não se salva não, doutor.
- Como? – pergunta o médico atônito.
- Esse não pode se salvar. Entende? Não pode! Matou um da gente. Esse acaba aqui!
- Você está insinuando que eu o mate?
- Doutor, sinceramente, a escolha é sua: se ele sair vivo daqui, morrem os dois depois; se você colaborar, morre só ele e ninguém fica sabendo de nada.
O médico entrou na sala de cirurgia tremendo. Em seus anos de vivência em emergências nunca havia se defrontado com algo semelhante, nem tampouco ouvira relatos parecidos por parte de algum colega. O médico anestesista terminava seu procedimento. Decidiu, por um breve instante, comunicar-lhe o acontecido, dividir a angustia; poderiam, juntos, encontrar alguma solução. Desistiu. Teve receio que fosse inútil e apenas resultasse em pôr mais uma vida em risco.
O médico anestesista lhe deseja boa sorte e sai de cena. Chega o seu momento. Transpira mais que o habitual. “Não posso fazer isso”, pensava. “Vou me tornar um cúmplice!”. No entanto, a possibilidade de ser morto provocava forte impressão na sua alma. Era um homem jurado! Claro, pois as palavras do sargento não foram outra coisa que um juramento de morte, mesmo que velado.
Pergunta aos assistentes:
- Vocês sabem alguma coisa sobre ele?
- Tentou roubar uma farmácia. Na hora passava uma viatura de polícia pelo local. Houve troca de tiros. Sobrou para ele. Os dois comparsas fugiram. Parece que um policial morreu – respondeu um deles.
- Quer dizer que é um bandido?
- É sim. É ladrão.
- Por favor, consiga água pra mim. Estou com muita sede – requisita o médico. Deixe que eu seguro as pontas por aqui.
- Tem certeza?! – pergunta o assistente, de certa forma surpreso com o pedido incomum.
Vacilava. Os olhos de súplica, que dirigia ao cirurgiado, poderiam parecer aos que o circundava, um atestado singular de humanidade! Eram olhos esgazeados e perdidos Acaso optasse pela morte do bandido, suas ações era limitadas. Teria de disfarçar, despistar, iludir. Seu espírito titubeava entre escolhas vitais. Pensou, e agiu como julgava que deveria fazer.
Voltou para casa às 22:30. Estava exausto. Tinha um ar atormentado, o qual foi notado pela esposa que o esperava acordada.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, nada. Esses plantões de domingo é que são um inferno!
Tomou banho. Vestiu-se. Passou pelo quarto da filha, olhou-a dormir. Nada nesse mundo lhe era mais caro. Aproximou-se da esposa, conversou amenidades. De repente imaginava-se separado de tudo aquilo ali, da casa, da mulher etc. Abraçou-a. Balançou a cabeça. Bobagem. Desviou a conversa para os projetos que acalentavam juntos: a viajem de férias e a troca de apartamento. Gostava de observá-la animada, fazendo cálculos, imaginando novos planos... Era assim que gostava e queria vê-la.
Quando se deitaram, pensava consigo, “falhei”. Acordou mais cedo que todos, foi até a varanda, contemplou a rua. Sorriu um sorriso resignado. Um riso que, não se sabe, era de alívio, ou de despedida.

5 comentários:

Felipe Pimentel Lopes de Melo disse...

Caro escritor pre-rupestre (sem pedra). Ganharás um frequentador frequente desse seu espaço.
Saludos

Camarão

Anônimo disse...

E não é que o senhor é mesmo dado as letras! Adorei as poesias!!! parabéns professor!
sofia

Anônimo disse...

Josias,

Muito bom. Gosto muito de textos que deixam na mão do leitor a dúvida ou a escolha pessoal.

Grande abraço,

Dimas

Anônimo disse...

a resposta pro desenlace é fácil: qual o time que ele torcia?

Josias de Paula Jr. disse...

Felipe, fique à vontade e convide os amigos.

Sofia, macho pernambucano como sou, devo dizer que não sou dado a nada!

Camarada Dimas, somos os filhos da obra aberta.

Aécio, Não entendi sua intenção.