O Atirador de Facas
Homem de uma frugalidade incrível; ficava dias sem comer. Para o dono do circo, um funcionário perfeito. Econômico, uma boca a menos para alimentar, praticamente. Ninguém sabia de onde havia vindo. Era quase sempre sério e calado. Esquivo durante o dia, desaparecido à noite.
O atirador de facas, olhar de esguelha e temperamento de gato, cativara os colegas em pouco tempo. "Tem horas que parece odiar tudo isso aqui", disse um. "Mas não é má pessoa", emendou.
Na cidade X estrearia o novo número. Uma linda moça comporia o quadro; clássico antialvo a extremar o suspense. Já na primeira noite o sucesso esplende. Segundo dia, audiência lotada. Em meio a restos de aplauso, a terceira faca vara o espaço. O rumor ínfimo do ar deslocado, o susto da moça, o átimo, o jovem coração traspassado.
Absoluto silêncio. Cabisbaixo, o atirador retira-se. Mórbido picadeiro... Vai-se a plateia, a trupe em prantos.
Na boca da noite deu-se o enterro. Broto de vida atravessado pelo infortúnio... Todos presentes, menos o atirador. Vagava na escuridão.
Em suas camas, os artistas tentam dormir. Madrugada alta, o líder mambembe e proprietário do circo sai às cercanias em busca do involuntário assassino. Deseja consolá-lo. Longa procura. No céu a lua crescente, irônico riso de Urano, luzia. Noturnos ruídos...
Viu-o comendo. Atônito, os olhos do dono olhavam a esdrúxula cena. O atirador, absorto, comia. Na verdade devorava, com inédita gula, as desenterradas e tenras carnes da linda moça.
10 comentários:
A narrativa vai prendendo, pelas palavras mágicas, assim como a própria mágica da cena, vais criando pontos de tensões, chegamos a ouvir a música que anuncia o suspense. Aplaudimos juntos com a platéia outra do circo, suspiramos aliviados, mas o desfecho (final), é digno da atuação de um Bella Lugosi.
Então, o senhor agora está a escrever contos. Ainda bem que "minimalistas", de outro modo, meu coração não iria aguentar o suspense.
Ele é atirador de facas e você, Josias, malabarista e mágico das palavras.
Abraço.
Magna
Belo, muito belo. E humano, cruelmente humano... Gostei desta sua nova vereda. Vou segui-lo no twitter.
Josias, vc é Geo? Geo, amigo de Marx, que fez movimento estudantil?
Menino... o negócio tá ficando bom né? aliás... tá ficando cada dia melhor... gostei que só!!!
Josias,
Gostei dessa novidade dos minicontos.É bem interessante!
Quanto a citação de Caio Abreu lá no blog, não sei ao certo de que obra é, achei em um blog dedicado a ele, mas tô tentando descobrir de onde foi tirada e assim que souber te falo, tá?
Abs.
Geó,
Que beleza!Como disse Canto da Boca, a narrativa vai prendendo, criando pontos de tensão que anunciam o suspense. E o final então, fantástico!
Vou trabalhar no layout do teu novo blog, este estilo precisa de cara nova!
Dimas Lins
O Poeta de finais surpreendentes. O miniconto ficou delicioso, Geó. Concordo com minha mana (Canto da Boca): dá para ouvir a música, imaginar o cenário, flagrar o louco assassino devorando seu crime com gula.
Show de bola.
Sabe de quem lembrei ao ler seu texto? De Kafka. Gosto desse estilo. Você mostra cruamente o homem que devora sua própria espécie. O conto é um espelho que nos faz pensar: e não é que tem sido assim todos os dias? Também, faz-nos refletir sobre as necessidades que motivam esse ato de devorar, pois - por sermos seres humanos repletos de necessidades - desejamos. Desejar e devorar, eis o binômio que nos arrasta segundo nossos instintos...
Josias
Cheguei em seu blog através de
Magna, Samarone, estas belas pessoas.Que conto lindo, a narrativa prende e surpreende.
Um abraço
Lamour
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