quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Contos Minimalistas



Mudança de estação


Estava exausto; como, aparentemente, exausta estava a paisagem a sua volta. O excesso de folhas amarelecidas deitadas ao chão denunciava o trabalho do outono. Sentiu na pele a aragem gélida: o vento traficava já o inverno em seus moinhos. No mesmo instante um gomo de flor despenca sobre o solo e assusta o pequeno pássaro que pousado nele estava. Teve pena do pássaro, teve pena de si mesmo. Se lhe fosse permitido, choraria. Marchas, batalhas, esforços, vitórias... tudo consumia-se no vazio. Todos os atos a que era compelido, esgotara-o. O centurião rumou na direção do rochedo, afastando-se ainda mais do acampamento. Com gestos calmos despojou-se de todas as armas; lançou-as ao abismo. A terra as recebeu com um quase inaudível baque. “Não lutarei jamais”, disse. Trazia inscrita em sua proteção de couro a marca sagrada do peixe. “Eu visto a verdade”. A noite chegava, julgou que gritavam seu nome. Pôs-se de pé. “Não poderão demover-me”. À beira do penhasco via vultos se aproximarem. O que queriam dele? Perdoar-lhe-iam o extravio das armas? Não sabia. Por segundos olhou o imenso vale que se abria a sua frente. Resistiria. Teve a certeza de que, dali para frente, independente da vontade alheia, mudaria seu caminho: vertiginosamente.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Poema

Nat Dicknson - Doing Art



O cão


Cão, seus dentes;
a mordida
e a pele
rasgada.

Qual cão
me persegue
e a cada cravada
me arde a alma?

Cão de raiva
ininterrupta,
que me acha
sempre
preso a pregos:
no ermo mais recôndito
do meu ego

sábado, 31 de outubro de 2009

Contos Minimalistas

"O atirador de facas" - Matisse - 1947



O Atirador de Facas

Homem de uma frugalidade incrível; ficava dias sem comer. Para o dono do circo, um funcionário perfeito. Econômico, uma boca a menos para alimentar, praticamente. Ninguém sabia de onde havia vindo. Era quase sempre sério e calado. Esquivo durante o dia, desaparecido à noite.

O atirador de facas, olhar de esguelha e temperamento de gato, cativara os colegas em pouco tempo. "Tem horas que parece odiar tudo isso aqui", disse um. "Mas não é má pessoa", emendou.

Na cidade X estrearia o novo número. Uma linda moça comporia o quadro; clássico antialvo a extremar o suspense. Já na primeira noite o sucesso esplende. Segundo dia, audiência lotada. Em meio a restos de aplauso, a terceira faca vara o espaço. O rumor ínfimo do ar deslocado, o susto da moça, o átimo, o jovem coração traspassado.

Absoluto silêncio. Cabisbaixo, o atirador retira-se. Mórbido picadeiro... Vai-se a plateia, a trupe em prantos.

Na boca da noite deu-se o enterro. Broto de vida atravessado pelo infortúnio... Todos presentes, menos o atirador. Vagava na escuridão.

Em suas camas, os artistas tentam dormir. Madrugada alta, o líder mambembe e proprietário do circo sai às cercanias em busca do involuntário assassino. Deseja consolá-lo. Longa procura. No céu a lua crescente, irônico riso de Urano, luzia. Noturnos ruídos...

Viu-o comendo. Atônito, os olhos do dono olhavam a esdrúxula cena. O atirador, absorto, comia. Na verdade devorava, com inédita gula, as desenterradas e tenras carnes da linda moça.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Contos Minimalistas


A Moça, a solidão e sua sorte

Muito mística, embrenhou-se em rituais mágicos esquecidos. Em meio ao mais rotundo desespero, quando soube que era para sempre sua solidão, migrou para a floresta. Numa pequena cabana preparou-se para a hora fatídica, para o dia do alívio, no qual consumação e coragem se conciliariam. Era o dia de pedir permissão à morte para deixar a vida. E assim ela fez - numa manhã de uma luminosidade tão diáfana que parecia que o mundo inteiro era um sonho. Uma leve brisa correu ao redor, folhas fizeram seus ruídos... Contudo a morte lhe negou a vontade. Deixou-a só com suas pedras e horas excessivas. E ela viveu muitos, mas muitos anos ainda. Incapaz de morrer.






PS: Tais contos minimalistas surgem da reunião daquilo que estão chamando de minicontos, ou microcontos. O Twitter é meu pergaminho para experimentá-los... Assim, esses contos muitas vezes surgem aos poucos, desdobrando-se nos dias. Quem quiser vê-los em gestação, pode ir ao Twitter e buscar por josiasgeo...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Poema





Várzea (Brasilit)


Tem dia que é tanta alegria

que brota da gente,

que nem cabe no apartamento;

e transborda pela varanda

e acima e abaixo e além...

ela avança.

E escorre pela fachada

de cores de nosso prédio.

E até mesmo a má vizinhaça

que mora em malocas de tédio,

faz-se feliz, e do nada

põe-se em passos de dança.



Para Tita Coutinho

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Poema


"A persistência da memória", Salvador Dali


Como quem perdido em encruzilhada



Como quem perdido em encruzilhada,
vaga esse amor abléptico e errático.
Tétrico fantasma a lançar repto
à sina que ao sonho finda, esmaga.

Transpõe, equívoco, a linha tênue
do umbral da morte; contudo em seguida,
qual zumbi de cemitério, à vida
volta pra errar entre gente e lêmures.

Em árido confim tal morto-vivo
plange, condenado por tribunal
oculto; vulto a pagar por mal
incerto, ente fadado ao castigo.

E infringiu qual desumana cláusula
esse amor, atrativo de entreato?
Quem inspirou sua alma retrátil
a ter o pó dos dias em clausura?

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Poema


Folha Seca


Já vicejei em frondosa árvore,

fruindo seiva pura da terra.

Hoje não há quem se arvore em ver-me:

pairo só, estranho cadáver.


Sem alarde povôo as esquinas;

à surdina evolo em moinhos,

sem vontade, cativa da brisa,

sou varrida por pés e ancinhos.


Sonho ao menos no rio banhar-me

e à cidade mirar de seu leito.

Ano após ano seguir seu curso;

ao oceano deixar meus restos.


Sobra de vida... Mórbido sono...

É natural, não é esperteza,

uma vítima vil do outono

aproveitar-se da correnteza!