terça-feira, 25 de março de 2008

Karlinha



Seu nome era Maria Karla, mas todos a chamavam de Karlinha. Nessa noite Karlinha voltava para casa com passo vacilante. As coisas não eram mais as mesmas. Sabia que chegaria a casa e ela estaria vazia. Ligaria a televisão, tomaria banho e esperaria o sono chegar, sempre em silêncio. Sozinha.
Naturalmente pensou nos filhos, A gente cria os filhos para o mundo, lembrava e repetia esse ditado banal. Chutou com suavidade uma lata de cerveja amassada, Um sábado à noite em casa é dose!
É isso, é isso Karla, daqui a dois meses mais um aniversário... Quarenta e sete anos! Me lembro quando minha mãe tinha essa idade... E veio a sua memória o tempo em que foi casada. Casou-se na igreja, com tudo o que tinha direito. É engraçado, quanto mais o tempo passa, mais eu tenho mais certeza que eu poderia ter sido tudo de Laércio, tudo: amante, amiga, irmã, menos esposa. Mas como a gente tinha gostos em comum! Eu sabia exatamente o tipo de bar, de filme, de música que ele ia gostar... Mas era para ter sido um amigo. Um mulherengo, cínico, isso ele era também. Ainda bem que os meninos puxaram mais a mim.
Se bem que Márcio herdou a mesma sem-vergonhice do pai... Se ao menos Arabela estivesse em casa. Qualquer dia desses ela entra em casa e diz que vai se casar com o namoradinho. Tão nova! E hoje em dia é besteira querer se prender tão cedo...
Depois do casamento tivera vários namorados, casos de maior ou menor duração. Homens mais velhos, casados, viúvos, jovens rapazes... Hoje não namorava mais. Também, sem sair não tem como encontrar ninguém. Metida dentro de um apartamento só se faz amizade com barata.
Já faz cinco anos que me aposentei! O tempo passa rápido. Sempre quis me aposentar. Mas o pior é que às vezes me dá uma saudade... Lá na repartição era bom. Ninguém pegava no meu pé, eu fazia o meu trabalho, não tinha problemas de horário... E se lembrou das sextas-feiras. Toda sexta era dia de farra com os antigos colegas. Quantas noitadas. Foi nas sextas que conheceu a maioria de seus paqueras. Foi nas sextas que, em geral, fizera novas amizades. Meu Deus! Perdi o contato com tanta gente. Rosinha, Cláudio, Irene, não sei nem se estão vivos...
O dinheiro da aposentadoria não dá para nada! Nesse exato momento tomaria uma cerveja, se acaso tivesse com que pagar. Uma saideira. Sozinha. Depois iria para casa. Seu irmão era um amigão. Ligou para ela nessa tarde porque sentira que ela precisava de companhia. Embora não gostasse de sair sem dinheiro. Ele é que insistia... E eu também estava precisando dar uma saidinha. Quantos bons dias já havia passado com seus irmãos e irmãs. O danado era que todos estavam nas suas casas, com seus companheiros, seus filhos... Todo mundo está tão caseiro!
Já perto do prédio, lembrou-se das conversas e piadas daquela tarde. Quando se preparavam para ir embora, um grande amigo de seu irmão, que se tornara amigo dela também, comentou de passagem – “Eita que já vamos, Karlinha! Estamos ficando velhos. Nos bons tempos essa farra se estenderia noite à dentro. O corpo não agüenta mais...”. Ele devia ter uns quinze anos a menos. Sabia que ele continuaria na farra com a namorada e que fez aquele comentário casualmente. Mas havia algo dirigido a ela nessas palavras. Ela, tão conhecida como animada e farreira insuperável, ela que nem tão cedo voltava para casa antigamente... Hoje entrega os pontos rapidamente. E como isso não era verdade! Pelo contrário... Se estivesse acompanhada, se soubesse que não voltaria a casa sozinha, seria capaz de amanhecer em botequim. O problema é que, solitário, o corpo fraqueja.
Quem sabe um vizinho não me convida para uma conversa. Chegou ao seu edifício. Na entrada, Seu João, o porteiro, faz um comentário habitual:
- Está quente hoje, não é Dona Karla?
- Está demais.
- Isso é chuva que vem por aí.
Quis comentar algo, alongar a conversa, mas não fazia sentido. Deu as costas e, subindo as escadas, pensou que estas seriam suas últimas palavras no fim de semana... E daí desejou que chovesse muito. Mas chovesse o que não se imaginava. Sonhou com um novo dilúvio.

2 comentários:

Silvia Góes disse...

quantas karlinhas há em todos nós...
não sei como te descobri, mas cheguei, gostei e fiquei. foi bom ter recebido você lá na casa dos meus dentros também.
silvia

Anônimo disse...

Ê, poeta! Viraste cronista. Drummond deve estar orgulhoso. Afinal, era poeta e cronista. Escrevia belezas como ninguém, assim como você.

O estilo da crônica me lembrou Sabino, o meu preferido, embora goste muito de Rubem Braga e o próprio Drummond.

Parabéns e grande abraço,

Dimas