domingo, 4 de novembro de 2007

Uma postura diante da vida

Não gostava muito daquelas bolachas.
- Não sei porque insisto em comer?
E pensava que, se fosse em um outro dia, poderia ter ido à praia. Mas acordou sem disposição - não dormira bem também. Gostava de praia: o sol, o clima de festa, de alegria; as mulheres e suas... Ah as mulheres! Teve um dia que, jurava, viu uma delas fazendo top less. Gostava de praia! Lembrou-se das vezes que o irmão chegava em casa vindo de Boa Viagem... Nunca mais vira o irmão - "Será que ainda mora com mãe?", indagou-se. Nunca fora à praia com seu irmão.

Morava só. Em alguns momentos gostava de ficar só. Acostumara-se, parece.

E olhava de longe um grupo de crianças do bairro jogando bola. Que barulhada que faziam! Gostava de ver futebol. Tantas vezes sonhou em ser jogador. Imaginava um estádio lotado, numa decisão de campeonato, e ele marcando o gol da vitória. E a galera inteira gritando o seu nome. Era tímido mas gostaria de ser, ao menos uma vez, o centro da atenção de todos. E ser admirado...

Tarde quente. Muito quente. "Vento preguiçoso que não se mexe", pensou. Soube que estava passando um filme legal em um dos cinemas da cidade. Teve vontade de ir. Mas era difícil. Morando no Alto do Capitão, tinha que descer o morro, se deslocar muito até a parada mais próxima... Era muito cansativo. Mas gostava muito de filmes. Não gostava de filmes com legenda - não dava tempo de ler. Impressionava-se com quem conseguia ver filme legendado! Estudos.

Não gostava de domingos. Sentia-se mais só que nos outros dias. À noite, às vezes ia ao culto, outras não. Tinha dúvidas... E pensou muito, olhando pela janela: na vida, no que poderia ter sido; formulou hipóteses alternativas: se eu fosse rico, se tivesse um carro, se fosse muito conhecido; se tivesse muitos amigos... E a noite chegou. E ele estava, de fato, desanimado e sem disposição. Tateou a parede em busca do interruptor. Acendeu a luz. Seus olhos correram sua pequenina moradia: oca, pobre, vazia e silenciosa. Decidiu escutar o rádio. Foi até à mesa, onde estava o aparelho, pegou-o e voltou para junto da janela. Era um programa bastante conhecido seu....

Estava triste. Ajeitou-se com dificuldades no assento. Fazia tempo, mas muito tempo mesmo, que precisava de uma nova cadeira de rodas.

7 comentários:

Serbão disse...

boa crônica. :)

Anônimo disse...

Josias,

Abordagem sutil sobre a distância da família, a limitação imposta pela dificuldade de locomoção e a frustração de não conseguir chegar aonde se imaginou. E se fosse diferente? E se pudesse mais?

Bela crônica sobre solidão, acrescida de um final desconcertante.

Um abraço,

Dimas

Felipe Pimentel Lopes de Melo disse...

Espero com ansiedade cada crônica, companheiro. Parabéns

Felipe Pimentel Lopes de Melo disse...

Espero com ansiedade cada crônica, companheiro. Parabéns

Sofia Sampaio disse...

O bonito dessa crônica é que ela não se prende muito ao fato físico. Embora ele te pegue de jeito no final, ela é uma crônica oceânica, grande e para qualquer um navegar.

Muito boa!
Sofia

A Autora disse...

Mais uma demonstração do seu poder de transformar qualquer coisa que toca em lirismo. Concordo com a opinião de todos, mas dou ênfase à do Felipe: também espero suas crônicas com ansiedade.

Aliás, o Santinha está mal das pernas, mas os torcedores batem o maior bolão na escrita. Vide vc, Dimas, Artur...

Josias de Paula Jr. disse...

Sofia, de certa forma colocaste o centro da costrução da crônica: a dificuldade física é fundamental, mas não é atacada diretamente.

Ana e Felipe, espero continuar debelando a ansiedade.

Dimas, essa é uma grande questão: e se ele conseguisse alcançar o que desejava? Talvez a única resposta possível: não seria mais humano!!