quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O Milagre


"Quem diria! Eu mesma nunca pensei que fosse se tornar algo sério! Essas coisas são tão engraçadas...”. Eram com esses pensamentos que Lurdinha voltava para casa. Há mais de um ano conhecera Jessiel. Um rapaz educado, doce e muito religioso. Era evangélico; vivia para a igreja.

Nunca se imaginou namorando com um evangélico. Sempre detestara a insistência protestante de converter a todos, sua insinuação de que qualquer outra religião é um equívoco. Ela própria era católica, freqüentava igreja, comungava. Porém nunca perdera o espírito ecumênico. Mas aconteceu: namorava há mais de um ano com Jessiel. E o amava.

“Com ele é diferente”, pensava. Era verdade que havia um desejo, não manifesto, de que ela trocasse de fé. Repetidamente pediu a ela que comparecesse a um culto: “Só para você conhecer”, dizia ele. Ela nunca fora. De certa forma, quis construir a relação mantendo essa espécie de identidade: “Nós nos gostamos, mas temos crenças diferentes”. A continuidade de tal fato era até um sinal de que ninguém se impunha ao outro, que mantinham uma relação de igualdade.

“Mas hoje vou lá. Vou fazer uma surpresa a ele.” Ainda se lembrava do dia anterior, quando ele mais uma vez sugeriu: “Vá lá, meu amor. Você vai gostar”. Acho até que ele me chama, mas não tem mais esperanças de que eu apareça em sua igreja, pensava Lurdinha. Estava com saudades, com vontade de vê-lo e a única forma era encontra-se com ele no culto: “Jessiel, aquele ali, não troca um compromisso da igreja por nada nesse mundo!”, costumava dizer às suas amigas.

Passou em casa. Tomou um banho, vestiu-se, pegou a bíblia e saiu. No caminho, pensando sozinha, não deixou de se perguntar com certa graça: “Será que um dia me converterei?”. Não tinha problema; se acontecesse seria uma decisão livre dela.

Não esperava tanta gente. Havia um notório clima de euforia. As pessoas gritavam, “Jesus! Aleluia Jesus!”. Era, de fato, um ato barulhento. Por encontrar dificuldade em aproximar-se do púlpito, deixou-se ficar junto da porta de entrada, encostada à parede.

Todo testemunho de um milagre é cercado por uma combinação de deslumbre e terror, medo. Mas Lurdinha sentia apenas terror. Todo o seu corpo tremia, seus olhos verteram lágrimas. Quando o paralítico levantou-se da cadeira de rodas e, a princípio com dificuldades, mas depois de forma natural e consistente, começou a andar e pular, sob a ovação orgiástica da assistência febril, Lurdinha deixou tombar a bíblia. Mal se sustinha em pé. Com a alma revirada e a mente embotada, só conseguiu pronunciar um murmúrio

“- Não! Não pode ser! Como Jessiel pôde fazer uma coisa dessa?!!”

5 comentários:

Anônimo disse...

legal se o Jessiel for o falso paralítico...

Anônimo disse...

Nasci católico, depois frequentei os cultos evangélicos à força ainda na minha infância e aos 17 anos tornei-me ateu. Mas como tinha medo de espírito, meu temor do além era incompatível com o ateísmo. Passei então a crer em Deus, mas sem vínculos religiosos. Perto dos 40 anos, tornei-me espírito, frequentei um centro por 2 anos e depois deixei.

Hoje, tenho simpatia pelo espiritismo, mas a minha inquietude nunca passou. Provavelmente nunca passará. Melhor mesmo é se preocupar com aquele que estão a nossa volta. Quanto ao resto, melhor me recolher a minha insignificância e ao meu desconhecimento das coisas transcedentais.

Bela crônica.

Dimas

Edlúcia disse...

Leio seu blog com muito gosto e sempre me surpreendo. Gostei particularmente deste texto: muito criativo! Reparei que a cadeira de rodas voltou (reminiscências do inconsciente?). O que ela simboliza? Se puder responder... Bjos!

A Autora disse...

A Edlúcia chegou antes de mim, mas assim que li o texto notei a presença da cadeira de rodas - em texto anterior, ela representa uma dificuldade real só aparente ao final; agora, também ao final uma revelação que nos remete a ela.
Vamos ver se eu acerto no ponto, como vc costuma fazer com meus escritos:
está querendo se livrar de algo que lhe prende, ao qual vc se sente incapacitado?
Vixe, fui longe demais? Quente ou frio? rs.

Josias de Paula Jr. disse...

Serbão, é este mesmo o final, por isso o choque da personagem principal.

Dimas, ando num ateísmo de bolchevique.

Ed e Ana, não sei qual o sentido. Sério. Quando a gente se impõe a ficcionalizar não domina toda a simbolização de nossos fantasmas. Mas, o que Ana disse, sua hipótese, me deixou, confesso, um tanto pertubardo....