sábado, 31 de outubro de 2009

Contos Minimalistas

"O atirador de facas" - Matisse - 1947



O Atirador de Facas

Homem de uma frugalidade incrível; ficava dias sem comer. Para o dono do circo, um funcionário perfeito. Econômico, uma boca a menos para alimentar, praticamente. Ninguém sabia de onde havia vindo. Era quase sempre sério e calado. Esquivo durante o dia, desaparecido à noite.

O atirador de facas, olhar de esguelha e temperamento de gato, cativara os colegas em pouco tempo. "Tem horas que parece odiar tudo isso aqui", disse um. "Mas não é má pessoa", emendou.

Na cidade X estrearia o novo número. Uma linda moça comporia o quadro; clássico antialvo a extremar o suspense. Já na primeira noite o sucesso esplende. Segundo dia, audiência lotada. Em meio a restos de aplauso, a terceira faca vara o espaço. O rumor ínfimo do ar deslocado, o susto da moça, o átimo, o jovem coração traspassado.

Absoluto silêncio. Cabisbaixo, o atirador retira-se. Mórbido picadeiro... Vai-se a plateia, a trupe em prantos.

Na boca da noite deu-se o enterro. Broto de vida atravessado pelo infortúnio... Todos presentes, menos o atirador. Vagava na escuridão.

Em suas camas, os artistas tentam dormir. Madrugada alta, o líder mambembe e proprietário do circo sai às cercanias em busca do involuntário assassino. Deseja consolá-lo. Longa procura. No céu a lua crescente, irônico riso de Urano, luzia. Noturnos ruídos...

Viu-o comendo. Atônito, os olhos do dono olhavam a esdrúxula cena. O atirador, absorto, comia. Na verdade devorava, com inédita gula, as desenterradas e tenras carnes da linda moça.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Contos Minimalistas


A Moça, a solidão e sua sorte

Muito mística, embrenhou-se em rituais mágicos esquecidos. Em meio ao mais rotundo desespero, quando soube que era para sempre sua solidão, migrou para a floresta. Numa pequena cabana preparou-se para a hora fatídica, para o dia do alívio, no qual consumação e coragem se conciliariam. Era o dia de pedir permissão à morte para deixar a vida. E assim ela fez - numa manhã de uma luminosidade tão diáfana que parecia que o mundo inteiro era um sonho. Uma leve brisa correu ao redor, folhas fizeram seus ruídos... Contudo a morte lhe negou a vontade. Deixou-a só com suas pedras e horas excessivas. E ela viveu muitos, mas muitos anos ainda. Incapaz de morrer.






PS: Tais contos minimalistas surgem da reunião daquilo que estão chamando de minicontos, ou microcontos. O Twitter é meu pergaminho para experimentá-los... Assim, esses contos muitas vezes surgem aos poucos, desdobrando-se nos dias. Quem quiser vê-los em gestação, pode ir ao Twitter e buscar por josiasgeo...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Poema





Várzea (Brasilit)


Tem dia que é tanta alegria

que brota da gente,

que nem cabe no apartamento;

e transborda pela varanda

e acima e abaixo e além...

ela avança.

E escorre pela fachada

de cores de nosso prédio.

E até mesmo a má vizinhaça

que mora em malocas de tédio,

faz-se feliz, e do nada

põe-se em passos de dança.



Para Tita Coutinho