O Atirador de Facas
Homem de uma frugalidade incrível; ficava dias sem comer. Para o dono do circo, um funcionário perfeito. Econômico, uma boca a menos para alimentar, praticamente. Ninguém sabia de onde havia vindo. Era quase sempre sério e calado. Esquivo durante o dia, desaparecido à noite.
O atirador de facas, olhar de esguelha e temperamento de gato, cativara os colegas em pouco tempo. "Tem horas que parece odiar tudo isso aqui", disse um. "Mas não é má pessoa", emendou.
Na cidade X estrearia o novo número. Uma linda moça comporia o quadro; clássico antialvo a extremar o suspense. Já na primeira noite o sucesso esplende. Segundo dia, audiência lotada. Em meio a restos de aplauso, a terceira faca vara o espaço. O rumor ínfimo do ar deslocado, o susto da moça, o átimo, o jovem coração traspassado.
Absoluto silêncio. Cabisbaixo, o atirador retira-se. Mórbido picadeiro... Vai-se a plateia, a trupe em prantos.
Na boca da noite deu-se o enterro. Broto de vida atravessado pelo infortúnio... Todos presentes, menos o atirador. Vagava na escuridão.
Em suas camas, os artistas tentam dormir. Madrugada alta, o líder mambembe e proprietário do circo sai às cercanias em busca do involuntário assassino. Deseja consolá-lo. Longa procura. No céu a lua crescente, irônico riso de Urano, luzia. Noturnos ruídos...
Viu-o comendo. Atônito, os olhos do dono olhavam a esdrúxula cena. O atirador, absorto, comia. Na verdade devorava, com inédita gula, as desenterradas e tenras carnes da linda moça.