sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A promessa


Quando sua avó se referiu à promessa feita em seu nome, aludindo para a necessidade de cumpri-la, não deu muita importância ao fato. Não que tivesse a pretensão de desrespeitar o rito e descurar do Eterno, mas porque supunha que a dívida com o divino seria resgatada com algo simples, a participação numa missa, por exemplo.
Eduardo andava feliz da vida e de bem com o mundo. Acabara de prestar vestibular, com êxito, para o curso de medicina. Seria um médico. Era jovem, disposto e otimista. Militante comunista, se imaginava um rematado revolucionário e trilhava sua vida fazendo da mesma uma ferramenta para alcançar o mundo onde todos seriam iguais...
Dentro do partido era considerado um dos quadros mais bem preparados. Discorria com desenvoltura sobre todas as minúcias da doutrina, tinha o dom de fazer crer que era porta-voz da mais autêntica pureza ideológica, cuja posse lhe dava a chave para os segredos da tática e estratégia insurreta.
Certo dia, em conversa com um companheiro, sentencia:
- Não dá mais! Amanhã mesmo levo a questão à direção partidária. Esse Jonatas é um pelego molenga....
- Na verdade – diz o amigo – ele é o próprio pequeno burguês.
- Não só isso. Ele é cristão! Totalmente cristão. Se há uma coisa nociva à postura revolucionária é essa baboseira, essa cretinice católica....
E Eduardo passou mais de meia hora atacando Deus, a igreja e quejandos.
Mas eis que, de súbito, Eduardo desaparece aos olhos dos companheiros de ideologia. Ninguém sabe de seu destino. Alguns especularam sobre uma provável morte; os tempos continuavam quentes, ainda havia gente que desaparecia. Outros ainda, tocados pelo medo ou por um caráter mesquinho, lançaram dúvidas sobre sua integridade – seria um espião? Um infiltrado? Efetivamente, ninguém sabia realmente dos motivos de sua desaparição.
Parte do mistério foi desvelada passado alguns meses. Por acaso, um dia, a esposa de um militante avistou Eduardo ao longe, andando apressado sobre uma ponte. Ele não morrera. Então, todos se perguntavam, o que dera nele para sumir assim? Não faltaram teorias sobre o tema. Contudo nada chegava perto da verdade...
Faltava aos antigos companheiros o conhecimento de um acontecimento vital, transcendental. Quando estava já próxima a formação em psiquiatria – especialidade que escolhera dentro do vasto campo da medicina – Eduardo é intimado por sua avó. Basta de adiar! O momento para pagar a promessa era agora!
- Tudo bem vó. Mas, qual é mesma a promessa?
- Você tem de lançar flores no rio.
- Flores no rio? – perguntou surpreso.
- Sim.
- Mas vó, todo mundo vai me ver! Já pensou se alguém do partido me vê?!
- Eduardo, Eduardo! Eu não quero saber de partido. Promessa é promessa! Quando você quis passar no vestibular não fez restrição a tipos de promessa...
- Mas vó, eu pensava que era uma missa, ou algumas orações. Não pode ser uma doação para um instituto de caridade?
- Não, Eduardo. Já disse: você tem de lançar flores no rio.
Deixou-se ficar quieto. Concedeu. Gostava e tinha muito respeito por sua avó.
No dia marcado, já foram eles. A avó fez o favor de carregar a coroa de flores enquanto chegavam ao cume da ponte; Eduardo se recusava. Viera quase disfarçado. Tinha o olhar agitado. “Agora lance, meu filho”, diz a velha.
No alto da ponte, Eduardo estático. Mira o horizonte triste, tal como vivenciasse as exéquias, e sacode a oferenda. Azar! O vento forte de agosto fez com que as flores descrevessem uma estranha parábola e, ao invés de tocarem as plácidas águas do Capibaribe, foram dar nas terras sujas das margens. Eduardo pressente o pior.
- Mas, meu filho, tem que ser na água! – disse meigamente sua avó.
Eduardo pensou em deserdar sua ascendência. Julgou que, se tivera sorte até agora de não ser visto por nenhum companheiro, a repetição do santo gesto era chance demais ao mau presságio: dessa vez teria testemunhos desagradáveis. Alguns curiosos já reparavam no acontecido; houve quem parasse para assistir.
Ligeiramente esverdeado ele vai em busca das flores fujonas, atola-se na lama, colhe-as novamente em seus braços. Sobe a ponte de cabeça baixa. Não queria olhar ninguém. Mas mesmo de cabeça baixa podia jurar que Carlão, melhor amigo seu no partido, observava-o com desprezo. Enfim, lança novamente as flores, dessa vez com sucesso.
Foi daí em diante que Eduardo abandonou as atividades sediciosas e guardou o socialismo no compartimento das memórias sensíveis. Anos depois, abandonaria também a medicina. Atualmente trabalha no comércio.
E sua avó? Sua avó dá palestras em um centro espírita e afirma a todos, sob juramento, que seu neto é médium.
Para Artur Perrusi

2 comentários:

Anônimo disse...

Geó,

Genial! Gostei de saber que o médico se dedica agora ao comércio, embora suspeite que os seus pacientes não compartilham do mesmo sentimento.

Sem querer tumultuar o ambiente, também acho que o vivente é médium. A começar pela altura.

Um abraço,

Dimas

Anônimo disse...

Hahaha!!! Essa foi muito boa! Valeu, velhão, a crônica tá hilária. Coitado do médico, hein?!

Publicarei no Blog dos Perrusi!